Brasil
Colônia: Documentos (1): Carta de achamento do Brasil
Pero Vaz de Caminha
Senhor
Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que nesta navegação agora se achou, não deixarei também de dar minha conta disso a Vossa Alteza, o melhor que eu puder, ainda que - para o bem contar e falar -, o saiba fazer pior que todos.
Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que nesta navegação agora se achou, não deixarei também de dar minha conta disso a Vossa Alteza, o melhor que eu puder, ainda que - para o bem contar e falar -, o saiba fazer pior que todos.
Tome Vossa Alteza, porém, minha
ignorância por boa vontade, e creia bem por certo que, para alindar nem afear,
não porei aqui mais do que aquilo que vi e me pareceu.
Da mafinhagem e singraduras do
caminho não darei aqui conta a Vossa Alteza, porque o não saberei fazer, e os
pilotos devem ter esse cuidado. Portanto, Senhor, do que hei de falar começo e
digo.
A partida de Belém, como Vossa
Alteza sabe, foi, segunda-feira, 9 de março. Sábado, 14 do dito mês, entre as
oito e as nove horas, nos achamos entre as Canárias, mais perto da Grã Canária,
onde andamos todo aquele dia em calma, à vista delas, obra de três a quatro
léguas. E domingo, 22 do dito mês, às dez horas, pouco mais ou menos, houvemos
vista das ilhas de Cabo Verde, ou melhor, da ilha de S. Nicolau, segundo o dito
de Pero Escobar, piloto.
Na noite seguinte, segunda-feira, ao
amanhecer, se perdeu da frota Vasco de Ataíde com sua nau, sem haver tempo
forte nem contrário para que tal acontecesse. Fez o capitão suas diligências
para o achar, a uma e outra parte, mas não apareceu mais!
E assim seguimos nosso caminho, por
este mar, de longo, até que, terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram vinte
e um dias de abril, estando da dita ilha obra de 660 ou 670 léguas, segundo os
pilotos diziam, topamos alguns sinais de terra, os quais eram muita quantidade
de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, assim como outras a que
dão o nome de rabo-de-asno. E, quarta feira seguinte, pela manhã topamos aves a
que chamam furabuchos.
Quarta-feira, 22 de abril: Neste
dia, a horas de vésperas, houvemos vista de terra! Primeiramente dum grande
monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele: e de terra
chá, com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome: O MONTE PASCOAL e
à terra: a TERRA DA VERA CRUZ.
Quinta-feira, 23 de abril: Mandou
lançar o prumo. Acharam vinte e cinco braças: e, ao sol posto, obra de seis
léguas da terra, surgimos âncoras, em dezenove braças - ancoragem limpa. Ali
permanecemos toda aquela noite. E à quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e
seguimos direitos à terra, indo os navios pequenos diante, por dezessete,
dezesseis, quinze, quatorze, treze, doze, dez e nove braças, até meia légua da
terra, onde todos lançamos âncoras em frente à boca de um rio. E chegaríamos a
esta ancoragem às dez horas pouco mais ou menos.
Dali avistamos homens que andavam
pela praia, obra de sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos, por
chegarem primeiro.
Então lançamos fora os batéis e
esquifes; e vieram logo todos os capitães das naus a esta nau do capitão-mor,
onde falaram entre si. E o capitão-mor mandou em terra no batei a Nicolau
Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou de ir para lá, acudiram
pela praia homens, quando aos dois, quando aos três, de maneira que, ao chegar
o batei à boca do rio, já ali havia dezoito ou vinte homens.
Eram pardos, todos nus, sem coisa
alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas.
Vinham todos rijamente sobre o bater; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que
pousassem os arcos. E eles os pousaram.
Ali não pôde deles haver fala, nem
entendimento de proveito, por o mar quebrar na costa. Deu-lhes somente um
barrete vermelho e uma carapuça de linha que levava na cabeça e um sombreiro
preto. Um deles deu-lhe um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma
copazinha pequena de penas vermelhas e pardas como de papagaio; e outro deu-lhe
um ramal grande de continhas brancas, miúdas, que querem parecer de aljaveira,
as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza, e com isto se volveu
às naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por causa do mar. Na
noite seguinte ventou tanto sueste com chuvaceiros que fez caçar as naus, e
especialmente a capitania.
Sexta-feira, 24 de abril: E sexta
pela manhã, às oito horas, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos,
mandou o Capitão levantar âncoras e fazer vela; e tomos ao longo da costa, com
os batéis e esquifes amarrados à popa na direção do norte, para ver se
achávamos alguma abrigada e bom pouso, onde nos demorássemos, para tomar água e
lenha. Não que nos minguasse, mas por aqui nos acertamos.
Quando fizemos vela, estariam já na
praia assentados perto do rio obra de sessenta ou setenta homens que se haviam
juntado ali poucos e poucos. Fomos de longo, e mandou o Capitão aos navios
pequenos que seguissem mais chegados à terra e, se achassem pouso seguro para
as naus, que amainassem.
E, velejando nós pela costa, acharam
os ditos navios pequenos, obra de dez léguas do sítio donde tínhamos levantado
ferro, um recife com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui
larga entrada. E meteram-se dentro e amainaram. As naus arribaram sobre eles; e
um pouco antes do sol-posto amainaram também. obra de uma légua do recife, e
ancoraram em onze braças.
E estando Afonso Lopes, nosso
piloto, em um daqueles navios pequenos, por mandado do Capitão, por ser homem
vivo e destro para isso, meteu-se logo no esquife a sondar o porto dentro; e
tomou dois daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos, que estavam
numa almadia. Um deles trazia um arco e seis ou sete setas: e na praia andavam
muitos com seus arcos e setas; mas de nada lhes serviram. Trouxe-os logo, já de
noite, ao Capitão, em cuja nau foram recebidos com muito prazer e festa.
A feição deles é serem pardos,
maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma.
Não fazem o menor caso de encobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm
tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo
furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, do comprimento duma
mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como furador.
Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço
e os dentes é feita como roque de xadrez, ali encaixado de tal sorte que não os
molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber.
Os cabelos seus são corredios. E
andavam tosquiados, de tosquia alta, mas que de sobre-pente, de boa grandura e
rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte
a fonte para detrás, uma espécie de cabeleira de penas de ave amarelas, que
seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o
toutiço e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena e pena, com uma
confeição branda como cera (mas não o era), de maneira que a cabeleira ficava
mui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a
levantar.
O Capitão, quando eles vieram,
estava sentado em uma cadeira, bem vestido, com um colar de ouro mui grande ao
pescoço, e aos pés uma alcatifa por estrado. Sancho de Tovar, Simão de Miranda,
Nicolau Coelho, Aires Correia, e nós outros que aqui na nau com ele vamos,
sentados no chão, pela alcatifa. Acenderam-se tochas. Entraram. Mas não fizeram
sinal de cortesia, nem de falar ao Capitão nem a ninguém. Porém um deles pôs
olho no colar do Capitão, e começou de acenar com a mão para a terra e depois
para o colar, como que nos dizendo que ali havia ouro. Também olhou para um
castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o
castiçal, como se lá também houvesse prata.
Mostram-lhes um papagaio pardo que o
Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como quem
diz que os havia ali. Mostraram-lhe um carneiro: não fizeram caso. Mostraram-lhe
uma galinha; quase tiveram medo dela: não lhe queiram pôr a mão; e depois a
tomaram como que espantados.
Deram-lhe ali de comer: pão e peixe
cozido, confeites, fartéis, mel e figos passados. Não quiseram comer quase nada
daquilo; e se alguma coisa provaram, logo a lançavam fora. Trouxeram-lhes vinho
numa taça; mal puseram a boca; não gostaram nada, nem quiseram mais.
Trouxeram-lhes água em uma albarrada. Não beberam. Mal a tomaram na boca, que
lavaram, e logo a lançaram fora.
Viu um deles umas contas de rosário,
brancas; acenou que lhas dessem, folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço.
Depois tirou-as e enrolou-as no braço e acenava para a terra e de novo para as
contas e para o colar do Capitão, como dizendo que dariam ouro por aquilo.
Isto tomávamos nós assim por assim o
desejarmos. Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto
não o queríamos nós entender, porque não lho havíamos de dar.
E depois tornou as contas a quem lhas
dera.
Então estiraram-se de costas na
alcatifa, a dormir, sem buscarem maneira de encobrir suas vergonhas, as quais
não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas. O Capitão
lhes mandou pôr por baixo das cabeças seus zoxins; e o da cabeleira
esforçava-se por a não quebrar. E lançaram-lhes um manto por cima; e eles consentiram,
quedaramse e dormiram.
Sábado, 25 de abril: Ao sábado pela
manhã mandou o Capitão fazer vela, e fomos demandar a entrada, a qual era mui
larga e alta de seis a sete braças. Entraram todas as naus dentro; e ancoraram
em cinco ou seis braças - ancoragem dentro tão grande, tão formosa e tão segura
que podem abrigar-se nela mais de duzentos navios e naus. E tanto que as naus
quedaram ancoradas, todos os capitães vieram a esta nau do Capitão-mor. E daqui
mandou o Capitão a Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias que fossem em terra e
levassem aqueles dois homens e os deixassem ir com seu arco e setas, e isto
depois que fez dar a cada um sua camisa nova, sua carapuça vermelha e um
rosário de contas brancas de osso, que eles levaram os braços, seus cascavéis e
suas campainhas. E mandou com eles, para lá ficar, um mancebo degredado, criado
de D. João Telo, a que chamam Afonso Ribeiro, para lá andar com eles e saber de
seu viver e maneiras. E a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho.
Fomos assim de frecha direitos à
praia. Ali acudiram logo obra de duzentos homens, todos nus, e com arcos e
setas nas mãos. Aqueles que nós levávamos acenaram-lhes que se afastassem e
poisassem os arcos; e eles os poi'saram, mas não se afastaram muito. E mal
poisaram os arcos, logo saíram os que nós levávamos, e o mancebo degredado com
eles. E saídos não pararam mais: nem esperavam um pelo outro, mas antes corriam
a quem mais corria. E passaram um rio que por ali corre, de água doce, de muita
água que lhes dava pela braga; e outros muitos com eles. E foram assim
correndo, além do rio, entre umas moitas de palmas onde estavam outros. Ali
pararam. Entretanto, foi-se o degredado com um homem que, logo ao sair do
batel, o agasalhou e levou até lá. Mas logo tornaram a nós; e com ele vieram os
outros que nós leváramos, os quais vinham já nus e sem carapuças.
Então se começaram de chegar muitos.
Entravam pela beira do mar para os batéis, até que mais não podiam; traziam
cabaças de água, e tornavam alguns barris que nós levávamos; enchiam-nos de
água e traziam-nos aos batéis. Não que eles de todos chegassem à borda do
batel. Mas junto a ele, lançavam os barris que nós tomávamos; e pediam que lhes
dessem alguma coisa. Levava Nicolau Coelho cascavéis e manilhas. E a uns dava
um cascavel, a outros uma manilha, de maneira que com aquele engodo quase nos
queriam dar a mão. Davam-nos daqueles arcos e setas por sombreiros e carapuças
de linho ou por qualquer coisa que homem lhes queria dar.
Dali se partiram os outros dois
mancebos, que os não vimos mais.
Muitos deles ou quase a maior parte dos que andavam ali traziam aqueles bicos de osso nos beiços. E alguns, que andavam sem eles, tinham os beiços furados e nos buracos uns espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha; outros traziam três daqueles bicos a saber, um no meio e os dois nos cabos. Ali andavam outros, quartejados de cores, a saber, metade deles da sua própria cor, e metade de tintura preta, a modos de azulada; e outros quartejados de escaques. Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha.
Muitos deles ou quase a maior parte dos que andavam ali traziam aqueles bicos de osso nos beiços. E alguns, que andavam sem eles, tinham os beiços furados e nos buracos uns espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha; outros traziam três daqueles bicos a saber, um no meio e os dois nos cabos. Ali andavam outros, quartejados de cores, a saber, metade deles da sua própria cor, e metade de tintura preta, a modos de azulada; e outros quartejados de escaques. Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha.
Ali por então não houve mais fala
nem entendimento com eles, por a berberia deles ser tamanha que se não entendia
nem ouvia ninguém.
Acenamos-lhe que se fossem; assim o
fizeram e passaram-se além do rio. Saíram três ou quatro homens nossos dos
batéis, e encheram não sei quantos barris de água que nós levávamos e
tornamo-nos às naus. Mas quando assim vínhamos, acenaram-nos que tornássemos.
Tornamos e eles mandaram o degredado e não quiseram que ficasse lá com eles.
Este levava uma bacia pequena e duas ou três carapuças vermelhas para lá as dar
ao senhor, se o lá o houvesse. Não cuidaram de lhe tirar coisa alguma, antes o
mandaram com tudo. Mas então Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar, ordenando
que lhes desse aquilo. E ele tornou e o deu, à vista de nós, àquele que da
primeira vez o agasalhara. Logo voltou e nós trouxemo-lo.
Esse que o agasalhou era já de
idade, e andava por louçainha todo cheio de penas, pegadas pelo corpo, que
parecia asseteado como S. Sebastião. Outros traziam carapuças de penas
amarelas; outros, de vermelhas; e outros de verdes. E uma daquelas moças era
toda tingida, de baixo a cima daquela tintura; e certo era tão bem feita e tão
redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres
da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua
como ela. Nenhum deles era fanado, mas, todos assim como nós. E com isto nos
tornamos e eles foram-se.
À tarde saiu o Capitão-mor em seu
batel com todos nós outros e com os outros capitães das naus em batéis a folgar
pela baía, em frente da praia. Mas ninguém saiu em terra, porque o Capitão o
não quis, sem embargo de ninguém nela estar. Somente saiu - ele com todos nós -
em um ilhéu grande, que na baía está e que na baixa-mar fica mui vazio. Porém é
por toda a parte cercado de água, de sorte que ninguém lá pode ir a não ser de
barco ou a nado. Ali folgou ele e todos nós outros, bem uma hora e meia. E
alguns marinheiros, que ali andavam com um chinchorro, pescaram peixe miúdo,
não muito. Então volvemo-nos às naus, já bem de noite.
Domingo, 26 de abril: Ao domingo de
Páscoa pela manhã, determinou o Capitão de ir ouvir missa e pregação naquele
ilhéu. Mandou a todos os capitães que se aprestassem nos batéis e fossem com
ele. E assim foi feito. Mandou naquele ilhéu armar um esperável, e dentro dele
um altar mui bem corregido. E ali com todos nós outros fez dizer missa, a qual
foi dita pelo padre frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com aquela voz
pelos outros padres e sacerdotes, que todos eram ali. A qual missa, segundo meu
parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção.
Ali era com o Capitão a bandeira de
Cristo, com que saiu de Belém, a qual esteve sempre levantada, da parte do
Evangelho.
Acabada a missa, desvestiu-se o
padre e subiu a uma cadeira alta; e nós todos lançados por essa areia. E pregou
uma solene e proveitosa pregação da história do Evangelho, ao fim da qual
tratou da nossa vinda e do achamento desta terra, conformando-se com o sinal da
Cruz, sob cuja obediência viemos, o que foi muito a propósito e fez muita
devoção.
Enquanto estivemos à missa e à
pregação, seria na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos como a de
ontem, com seus arcos e setas, a qual andava folgando. E olhando-nos,
sentaram-se. E, depois de acabada a missa, assentados nós à pregação,
levantaram-se muitos deles, tangeram corno ou buzina e começaram a saltar e a
dançar um pedaço. A alguns deles se metiam em almadias - duas ou três que aí
tinham - as quais não são feitas como as que eu já vi; somente são três traves,
atadas entre si. E ali se metiam quatro ou cinco, ou esses que queriam, não se
afastando quase nada da terra, senão enquanto podiam tomar pé.
Acabada a pregação, voltou o
Capitão, com todos nós, para os batéis, com nossa bandeira alta. Embarcamos e
tomos todos em direção à terra para passarmos ao longo por onde eles estavam
indo, na dianteira, por ordem do Capitão Bartolomeu Dias em seu esquife, com um
pau de uma almadia que lhe a mar levara, para lho dar; e nós todos, obra de
tiro de pedra, atrás dele.
Como viram o esquife de Bartolomeu
Dias, chegaram-se logo todos à água, metendo-se nela até onde mais podiam.
Acenaram-lhes que pousassem os arcos; e muitos deles os iam logo pôr em terra;
e outros não.
Andava aí um que falava muito aos
outros que se afastassem, mas não que a mim me parecesse que lhe tinham
acatamento ou medo. Este que os assim andava afastando trazia seu arco e setas,
e andava tinto de tintura vermelha pelos peitos, espáduas, quadris, coxas e
pernas até embaixo, mas o vazios com a barriga e o estômago eram de sua própria
cor. E a tintura era assim vermelha que a água a não comia nem desfazia, antes,
quando saía da água. parecia mais vermelha.
Saiu um homem do esquife de
Bartolomeu Dias e andava entre eles sem implicarem nada com ele para fazer-lhe
mal. Antes lhe davam cabaças de água, e acenavam aos do esquife que saíssem em
terra.
Com isto se volveu Bartolomeu Dias
ao Capitão; e viemo-nos às naus, a comer, tangendo gaitas e trombetas, sem lhes
dar mais opressão. E eles tornaram-se a assentar na praia e assim por então
ficaram.
Neste ilhéu, onde fomos ouvir missa
e pregação a água espraia muito, deixando murta areia e muito cascalho a
descoberto. Enquanto aí estávamos, foram alguns buscar marisco e apenas acharam
alguns camarões grossos e curtos, entre os quais vinha um tão grande e tão
grosso, como em nenhum tempo vi tamanho. Também acharam cascas de berbigões e
amêijoas, mas não toparam com nenhuma peça inteira.
E tanto que comemos, vieram logo
todos os capitães a esta nau, por ordem do Capitão-mor com os quais ele se
apartou, e eu na companhia. E perguntou a todos se nos parecia bem mandar a
nova do achamento desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos, para
melhor a mandar descobrir e saber dela mais do que nos nós podíamos saber, por
irmos de nossa viagem.
E entre muitas falas que no caso se
fizeram, foi por todos ou a maior parte dito que seria muito bem. E nisto
concluíram. E tanto que a conclusão foi tomada, perguntou mais se lhes parecia
bem tomar aqui por força um par destes homens para os mandar a Vossa Alteza,
deixando aqui por eles outros dois destes degredados.
Sobre isto acordaram que não era
necessário tomar por força homens, porque era geral costume dos que assim
levavam por força para alguma parte dizerem que há ali de tudo quanto lhes
perguntam: e que melhor e muito melhor informação da terra dariam dois homens
destes degredados que aqui deixasse, do que eles dariam se os levassem, por ser
gente que ninguém entende. Nem eles tão cedo aprenderam a falar para o saberem
tão bem dizer que muito melhor estoutros o não digam, quando Vossa Alteza cá
mandar. E que portanto não cuidassem de aqui tomar ninguém por força nem de
fazer escândalo, para todo mais os amansar e a pacificar, senão somente deixar
aqui os dois degredados quando daqui partíssemos. E assim, por melhor a todos
parecer, ficou determinado.
Acabado isto, disse o Capitão que fôssemos aos batéis em terra e ver-se-iam bem como era o rio, e também para folgarmos.
Acabado isto, disse o Capitão que fôssemos aos batéis em terra e ver-se-iam bem como era o rio, e também para folgarmos.
Fomos todos nos batéis em terra,
armados e a bandeira conosco. Eles andavam ali na prata. À boca do rio, para
onde nós íamos; e, antes que chegássemos, pelo ensino que dantes tinha, puseram
todos os arcos. e acenavam que saíssemos. Mas, tanto que os batéis puseram as
proas em terra, passaram-se logo todos além do rio, o qual não é mais largo que
um jogo de mancal. E mal desembarcamos, alguns dos nossos passaram logo o rio,
e meteram-se entre eles. Alguns aguardavam; outros afastavam-se. Era, porém, a
coisa de maneira que todos andavam misturados. Eles ofereciam desses arcos com
suas setas por sombreiros e carapuças de linho ou por qualquer coisa que lhes
davam.
Passaram além tantos dos nossos, e
andavam assim misturados com eles, que eles se esquivavam e afastavam-se. E
deles alguns iam-se para cima onde outros estavam.
Então o Capitão fez que dois homens
o tomassem ao colo, passou o rio, e fez tornar a todos.
A gente que ali estava não seria
mais que a costumada. E tanto que o Capitão fez tornar a todos, vieram a ele
alguns daqueles, não porque o conhecessem por Senhor, pois me parece que não
entendem, nem tomavam disso conhecimento, mas porque a gente nossa passava já
para aquém do rio.
Ali falavam e traziam muitos arcos e
continhas daquelas já ditas, e resgatavam-nas por qualquer coisa, em tal maneira
que os nossos trouxeram dali para as naus muitos arcos e setas e contas. Então
tornou-se o Capitão aquém do rio, e logo acudiram muitos à beira dele.
Ali veríeis galantes, pintados de
preto e de vermelho, e quartejados, assim nos corpos, como nas pernas, que,
certo, pareciam bem assim. Também andavam, entre eles, quatro ou cinco mulheres
moças, nuas como eles, que não pareciam mal. Entre elas andava uma com uma
côxa, do joelho até o quadril, e a nádega, toda tinha daquela tintura preta; e
o resto, tudo da sua própria cor. Outra trazia ambos os joelhos, com as curvas
assim tintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas e com tanta
inocência descobertas, que nisso não havia vergonha alguma.
Também andava aí outra mulher moça,
com um menino ou menina ao colo, atado com um pano (não sei de quê) aos peitos,
de modo que apenas as perninhas lhe apareciam. Mas as pernas da mãe e o resto
não traziam pano algum.
Depois andou o Capitão para cima ao
longo do rio, que corre sempre chegado à praia. Ali esperou um velho, que
trazia na mão uma pá de almadia. Falava, enquanto o Capitão esteve com ele,
perante nós todos, sem nunca ninguém o entender, nem ele a nós quantas lhe
demandávamos acerca douro, que nós desejávamos saber se na terra havia.
Trazia este velho o beiço tão
furado, que lhe caberia pelo furo um grande dedo polegar, metida nele uma pedra
verde, ruim, que cerrava por fora este buraco. O Capitão lha fez tirar. E ele
não sei que diabo falava e ia com ela direito ao Capitão, para lha meter na
boca.
Estivemos sobre isso rindo um pouco;
e então enfadou-se o Capitão e deixou-o. E um dos nossos deu-lhe pela pedra um
sombreiro velho, não por ela valer alguma coisa, mas por amostra. Depois
houve-a o Capitão, segundo creio, para. com as outras coisas, a mandar a Vossa
Alteza. Andamos por aí vendo a ribeira, a qual é de muita água e muito boa. Ao
longo dela há muitas palmas, não mui altas, em que há muito bons palmitos. Colhemos
e comemos deles muitos. Então tornou-se o Capitão para baixo para a boca do rio,
onde havíamos desembarcado.
Além do rio, andavam muitos deles
dançando e folgando, uns diante dos outros, sem se tomarem pelas mãos. E
faziam-no bem. Passou-se então além do rio Diogo Dias, almoxarife que foi de
Sacavém, que é homem gracioso e de prazer; e levou consigo um gaiteiro nosso
com sua gaita. E meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles
folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de
dançarem, fez-lhe ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras e salto real, de
que eles se espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com aquilo muito os
segurou e afagou, tomavam logo uma esquiveza como de animais monteses, e
foram-se para cima.
E então o Capitão passou o rio com
todos nós outros, e fomos pela praia de longo, indo os batéis, assim, rente da
terra. Fomos até uma lagoa grande de água doce, que está junto com a praia,
porque toda aquela ribeira do mar é apaulada por cima e sai a água por muitos
lugares. E depois de passarmos o rio, foram uns sete ou oito deles andar entre
os marinheiros que se recolhiam aos batéis. E levaram dali um tubarão, que
Bartolomeu Dias matou, lhes levou e lançou na praia. Bastará dizer-vos que até
aqui, como quer que eles um pouco se amansassem, logo duma mão que para a outra
se esquivavam, como pardais, do cevadouro. Homem não lhes ousa falar de rijo
para não se esquivarem mais; e tudo se passa como eles querem, para os bem
amansar. O Capitão ao velho, com quem falou, deu um carapuça vermelha. E com
toda a fala que entre ambos se passou e com a carapuça que lhe deu, tanto que
se apartou e começou de passar o rio, foi-se logo recatando e não quis mais
tornar de lá para aquém.
Os outros dois, que o Capitão teve
nas naus, a que se deu o que já disse, nunca mais aqui apareceram - do que tiro
ser gente bestial, de pouco saber e por isso tão esquiva. Porém e com tudo isto
andam muito bem curados e muito limpos. E naquilo me parece ainda mais que são
como aves ou alimárias monteses, às quais faz o ar melhor pena e melhor cabelo
que às mansas, porque os corpos seus são tão limpos, tão gordos e formosos, que
não pode mais ser.
Isto me
fez presumir que não têm casas moradas a que se acolham, e o ar, a que se
criam, os faz tais. Nem nós ainda até agora vimos casa alguma ou maneira delas.
Mandou o Capitão àquele degredado
Afonso Ribeiro, que se fosse outra vez com eles. Ele foi e andou lá um bom
pedaço, mais à tarde tornou-se, que o fizeram eles vir e não o quiseram lá
consentir. E deram-lhe arcos e setas; e não lhe tomaram nenhuma cousa do seu.
Antes - disse ele - que um lhe tomara umas continhas amarelas, que levava, e
fugia com elas, e ele se queixou e os outros foram logo após, e lhas tomaram e
tornaram-lhas a dar; e então mandaram-no vir. Disse que não vira lá entre eles
senão umas choupaninhas de rama verde e de fetos muito grandes, como de Entre
Doiro e Minho.
E assim nos tomamos às naus, já
quase noite, a dormir.
Segunda-feira, 27 de abril: A
segunda-feira, depois de comer, saímos todos em terra a tomar água. Ali vieram
então muitos, mas não tantos com as outras vezes. Já muito poucos traziam
arcos. Estiveram assim um pouco afastados de nós; e depois pouco a pouco
misturaram-se conosco. Abraçavam-nos e folgavam. E alguns deles se esquivavam
logo. Ali davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma carapucinha velha
ou por qualquer coisa. Em tal maneira isto se passou que jinte ou trinta
pessoas das nossas se foram com eles, onde outros muitos estavam moças e
mulheres. E trouxeram de lá muitos arcos e barretes de penas de aves, deles
verdes e deles amarelos, dos quais, segundo creio, o Capitão há de mandar
amostra a Vossa Alteza.
E, segundo diziam esses que lá
foram, folgavam com eles. Neste dia os vimos mais de perto e mais à nossa
vontade, por andarmos quase misturados. Ali, alguns andavam daquelas tinturas
quartejados; outros de metades; outros de tanta feição, como em panos de armar,
e todos com os beiços furados, e muitos com os ossos neles, e outros sem ossos.
Alguns traziam uns ouriços verdes,
de árvores, que, na cor, queriam parecer de castanheiras, embora mais pequenos.
E eram cheios duns grãos vermelhos pequenos, que, esmagados entre os dedos,
faziam tintura muito vermelha, de que eles andavam tintos. E quanto mais se
molhavam, tanto mais vermelhos ficavam.
Todos andam rapados até cima das
orelhas; e assim as sobrancelhas e pestanas. Trazem todos as testas, de fonte a
fonte, tintas da tintura preta, que parece uma fita preta, da largura de dois
dedos.
E o Capitão mandou àquele degredado
Afonso Ribeiro e a outros dois degredados, que fossem lá andar entre eles;
assim a Diogo Dias, por ser homem ledo, com que eles folgavam. Aos degredados
mandou que ficassem lá esta noute.
Foram-se lá todos, e andaram entre
eles. E, segundo eles diziam, foram bem uma légua e meia a uma povoação, em que
haveria nove ou dez casas, as quais eram tão compridas, cada uma, como esta nau
capitania. Eram de madeira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de
razoada altura; todas duma só peça, sem nenhum repartimento, tinham dentro
muitos esteios; e, de esteio a esteio, uma rede atada pelos cabos, alta, em que
dormiam. Debaixo, para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas
portas pequenas, uma num cabo, e outra no outro.
Diziam que em cada casa se recolhiam
trinta ou quarenta pessoas, e que assim os achavam; e que lhes davam de comer
daquela vianda, que eles tinham, a saber, muito inhame e outras sementes, que
na terra há e eles comem. Mas quando se fez tarde, fizeram-no logo tornar a
todos e não quiseram que lá ficasse nenhum. Ainda, segundo diziam, queriam vir
com eles.
Resgataram lá por cascavéis e por
outras coisinhas de pouco valor, que levavam, papagaios vermelhos, muito
grandes e formosos, e dois verdes pequeninos e carapuças de penas verdes, e um
pano de penas de muitas cores, maneira de tecido assaz formoso, segundo Vossa
Alteza todas estas cousa a, porque o Capitão há de mandar, segundo ele disse. E
com isto vieram; e nós tornamo-nos às naus.
Terça-feira, 28 de abril: A
terça-feira, depois de comer, fomos em terra dar guarda de lenha e lavar roupa.
Estavam na praia, quando chegamos,
obra de sessenta ou setenta em arcos e sem nada. Tanto que chegamos, vieram
logo para nós, sem se esquivarem. Depois acudiram muitos, que seriam bem
duzentos, todos sem arcos; e misturaram-se todos tanto conosco que alguns nos
ajudavam a acarretar lenha e a meter nos batéis. E lutavam com os nossos e
tomavam muito prazer.
Enquanto cortávamos a lenha, faziam
dois carpinteiros uma grande Cruz, dum pau, que ontem para isso se cortou.
Muitos deles vinham ali estar com os
carpinteiros. E creio que o faziam mais por verem a ferramenta de ferro com que
a faziam, do que por verem a Cruz, porque eles não têm coisa que de ferro seja,
e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas, metidas em um pau
entre duas talas, mui bem atadas e por tal maneira que andam fortes, segundo
diziam os homens, que ontem a suas casas foram, porque lhas viram lá.
Era já o conversação deles conosco tanta que quase nos estorvavam no que havíamos de fazer.
Era já o conversação deles conosco tanta que quase nos estorvavam no que havíamos de fazer.
O capitão mandou a dois degradados e
a Diogo Dias que fossem lá à aldeia (e a outras, se houvesse novas delas) e
que, em toda a maneira, não viessem dormir às naus, ainda que eles os
mandassem. E assim se foram. Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha, atravessavam
alguns papagaios por essas árvores, deles verdes e outros pardos, grandes e
pequenos, de maneira que me parece haverá muitos nesta terra. Porém eu não
veria mais que até nove ou dez. Outras aves então não vimos, somente algumas
pombas seixas, e pareceram-me bastante maiores que as de Portugal. Alguns
diziam que viram rolas; eu não as vi. Mas, segundo os arvoredos são mui muitos
e grandes, e de infindas maneiras, não duvido que por esse sertão haja muitas
aves!
Cerca da noite nos volvemos para as
naus com nossa lenha.
Eu, creio. Senhor, que ainda não dei
conta aqui a Vossa Alteza da feição de seus arcos e setas. Os arcos são pretos
e compridos, as setas também compridas e os ferros delas de canas aparadas,
segundo Vossa Alteza verá por alguns que eu creio - o Capitão a Ela há de
enviar.
Quarta-feira, 29 de abril: A
quarta-feira não fomos em terra, porque o Capitão andou todo o dia no navio dos
mantimentos a despejá-lo e fazer às naus isso que cada um podia levar. Eles
acudiram à praia; muitos, segundo das naus vimos. No dizer de Sancho de Tovar,
que lá foi, seriam obra de trezentos.
Diogo Dias e Afonso Ribeiro, o
degredado, aos quais o Capitão ontem mandou que em toda maneira lá dormissem,
volveram-se já de noite, por eles não quererem que lá ficassem. Trouxeram
papagaios verdes e outras aves pretas, quase como pêgas, a não ser que tinham o
bico branco e os rabos curtos.
Quando Sancho de Tovar se recolheu à
nau, queriam vir com ele alguns, mas ele não quis senão dois mancebos dispostos
e homens de prol. Mandou-os essa noite mui bem pensar e tratar. Comeram toda a
vianda que lhes deram; e mandou fazer-lhes cama de lençóis, segundo ele disse.
Dormiram e folgaram aquela noite.
E assim não houve mais este dia que
para escrever seja.
Quinta-feira, 30 de abril: A quinta-feira, derradeiro de abril, comemos logo, quase pela manhã, e fomos em terra por mais lenha e água. E, em querendo os Capitão sair desta nau, chegou Sancho de Tovar com seus dois hóspedes. E por ele ainda não ter comido, puseram-lhe toalhas. Trouxeram-lhe vianda e comeu. Aos hóspedes, sentaram cada um em sua cadeira. E de tudo o que lhes deram comeram mui bem, especialmente lacão cozido, frio, e arroz.
Quinta-feira, 30 de abril: A quinta-feira, derradeiro de abril, comemos logo, quase pela manhã, e fomos em terra por mais lenha e água. E, em querendo os Capitão sair desta nau, chegou Sancho de Tovar com seus dois hóspedes. E por ele ainda não ter comido, puseram-lhe toalhas. Trouxeram-lhe vianda e comeu. Aos hóspedes, sentaram cada um em sua cadeira. E de tudo o que lhes deram comeram mui bem, especialmente lacão cozido, frio, e arroz.
Não lhes deram vinho, por Sancho de
Tovar dizer que o não bebiam bem.
Acabado o comer, metemo-nos no batei e eles conosco. Deu um grumete a um deles uma armadura grande de porco montês, bem revolta. Tanto que a tomou, meteu-a logo no beiço, e, porque se lhe não queria segurar, deram-lhe uma pouca de cêra vermelha. E ele ajeitou-lhe seu adereço detrás para ficar segura, e meteu-a no beiço, assim revolta para cima. E vinha tão contente com ela, como se tivera uma grande joia. E tanto que saímos em terra, foi-se logo com ela, e não apareceu mais aí.
Acabado o comer, metemo-nos no batei e eles conosco. Deu um grumete a um deles uma armadura grande de porco montês, bem revolta. Tanto que a tomou, meteu-a logo no beiço, e, porque se lhe não queria segurar, deram-lhe uma pouca de cêra vermelha. E ele ajeitou-lhe seu adereço detrás para ficar segura, e meteu-a no beiço, assim revolta para cima. E vinha tão contente com ela, como se tivera uma grande joia. E tanto que saímos em terra, foi-se logo com ela, e não apareceu mais aí.
Andariam na praia, quando saímos,
oito ou dez deles; e de aí a pouco começaram a vir mais. E parece-me que
viriam, este dia, à praia quatrocentos ou quatrocentos e cinquenta.
Traziam alguns deles arcos e setas,
que todos trocaram por carapuças ou por qualquer coisa que lhes davam. Comiam
conosco do que lhes dávamos. Bebiam alguns deles vinho; outros o não podiam
beber. Mas parece-me, que se lho avezarem, o beberão de boa vontade.
Andavam todos tão dispostos, tão bem
feitos e garantes com suas tinturas, que pareciam bem. Acarretavam dessa lenha,
quanta podiam, com mui boa vontade, e levavam-na aos batéis.
Andavam já mais mansos e seguros
entre nós, do que nós andávamos entre eles.
Foi o Capitão com alguns de nós um
pedaço por este arvoredo até uma ribeira grande e de muita água, que a nosso
parecer era esta mesma, que vem ter à praia, e em que nós tomamos água.
Ali ficamos um pedaço, bebendo e
folgando, ao longo dela entre esse arvoredo, que é tanto, tamanho, tão basto e
de tantas plumagens, que homem as não pode contar. Há entre ele muitas palmas,
de que colhemos muitos e bons palmitos.
Quando saímos do batel, disse o
Capitão que seria bom irmos direitos à Cruz, que estava encostada a uma árvore,
unto com o rio, para se erguer amanhã, que é sexta-feira, e que nós puséssemos
todos em joelhos e a beijássemos para eles verem o acatamento que lhe tínhamos.
E assim fizemos. A esses dez ou doze que aí estavam acenaram-lhe que fizessem
assim, e foram logo todos beijá-la.
Parece-me gente de tal inocência
que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles,
segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença.
E portanto, se os degredados, que
aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que
eles segundo a santa intenção de Vossa Alteza, se hão de fazer cristãos e crer
em nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque certo, esta
gente é boa e de boa simplicidade. E, imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer
cunho, que lhes quiserem dar. E pois Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e bons
rostos, como a bons homens, por aqui nós trouxe, creio que não foi sem causa.
Portanto Vossa Alteza, que tanto
deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da sua salvação. E prezerá
a Deus que com pouco trabalho seja assim.
Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca,
nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que acostumada
seja ao viver dos homens. Nem comem senão desse inhame, que aqui há muito, e
dessa semente e fruitos, que a terra e as árvores de si lançam. E com isto
andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo
e legumes comemos.
Neste dia, enquanto ali andaram,
dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som dum tamboril dos nossos,
maneira que são muito mais nossos amigos que nós seus.
Se lhes homem acenava se queriam vir
às naus, faziam-se logo prestes para isso, em tal maneira que se a gente todos
quisera convidar, todos vieram. Porém não trouxemos esta noute às naus, senão
quatro ou cinco, a saber; o Capitão-mor, dois: Simão de Miranda, um, que trazia
já por pajem; e Aires Gomes, outro, também por pajem.
Um dos que o Capitão trouxe era um
dos hóspedes, que lhe trouxeram da primeira vez, quando aqui chegamos, o qual
veio hoje aqui, vestido na sua camisa e com ele um seu irmão; e foram esta
noute mui bem agasalhados, assim de vianda, como de cama, de colchões e lençóis,
para os mais amansar.
Sexta-feira, 1 de maio: E hoje, que
é sexta-feira, primeiro dia de maio, pela manhã, saímos em terra, em nossa
bandeira; e fomos desembarcar acima do rio contra o sul, onde nos pareceu que
seria melhor chantar a Cruz, para melhor ser vista. Ali assinalou o Capitão o
lugar, onde fizessem a cova para a chantar.
Enquanto a ficaram fazendo, ele com
todos nós outros fomos pela Cruz abaixo do rio, onde ela estava. Dali a
trouxemos com esses religiosos e sacerdotes diante cantando, em maneira de
procissão. Eram já aí alguns deles, obra de setenta ou oitenta; e, quando nos
viram assim vir alguns se foram meter debaixo dela, para nos ajudar. Passamos o
rio, ao longo da praia e fomo-la pôr onde havia de ficar, que será do rio obra
de dois tiros de besta. Andando ali nisso, vieram bem cento e cinquenta ou
mais.
Chantada a Cruz, com as armas e a
divisa de Vossa Alteza, que primeiramente lhe pregaram, armaram altar ao pé
dela. Ali disse missa o Padre Frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por
esses já ditos. Ali estiveram conosco a ela obra de cinquenta ou sessenta
deles, assentados todos de joelhos, assim como nós.
E quando veio ao Evangelho, que nos
erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco e
alçaram as mãos, ficando assim, até ser acabado; e então tornaram-se a assentar
como nós. E quando levantaram a Deus, que nós pusemos de joelhos, eles se
puseram assim todos, como nós estávamos com as mãos levantados, e em tal
maneira sossegados, que, certifico a Vossa Alteza, nos fez muita devoção.
Estiveram assim conosco até acabada a comunhão, depois da qual comungaram esses religiosos e sacerdotes e o Capitão com alguns de nós outros.
Estiveram assim conosco até acabada a comunhão, depois da qual comungaram esses religiosos e sacerdotes e o Capitão com alguns de nós outros.
Algum deles, por o sol ser grande,
quando estávamos comungando, levantaram-se, e outros estiveram e ficaram. Um
deles, homem de cinquenta ou cinquenta e cinco anos, continuou ali com aqueles
que ficaram. Esse, estando nós assim, ajuntava estes, que ali ficaram, e ainda
chamava outros. E andando assim entre eles falando, lhes acenou com o dedo para
o altar e depois apontou o dedo para o Céu, como se lhes dissesse alguma coisa
de bem; e nós assim o tomamos.
Acabada a missa, tirou o padre a
vestimenta de cima e ficou em alva; e assim se subiu, junto com o altar, em uma
cadeira. Ali nos pregou do Evangelho e dos Apóstolos, cujo é o dia, tratando,
ao fim da pregação, deste vosso prosseguimento tão santo e virtuoso, o que nos
aumentos a devoção.
Esses, que estiveram sempre à
pregação, quedaram-se como nós olhando para ele. E aquele, que digo, chamava
alguns que viessem para ali. Alguns vinham e outros iam-se. E, acabada a
pregação, como Nicolau Coelho trouxesse muitas cruzes de estanho com crucifixos,
que lhe ficaram ainda da outra vinda, houveram por bem que se lançasse uma ao
pescoço de cada um. Pelo que o Padre Frei Henrique se assentou ao pé da Cruz e
ali, a um por um, lançava a sua atada em um fio ao pescoço, fazendo-lha
primeiro beijar e a levantar as mãos. Vinham a isso muitos; e lançaram-nas
todas, que seriam obra de quarenta ou cinqüenta.
Isto acabado - era já bem uma hora depois do meio-dia - viemos a comer às naus, trazendo o Capitão consigo aquele mesmo que fez aos outros aquela mostrança para o altar e para o Céu e um seu irmão com ele. Fez-lhe muita honra e deu-lhe uma camisa mourisca e ao outro uma camisa destoutras.
Isto acabado - era já bem uma hora depois do meio-dia - viemos a comer às naus, trazendo o Capitão consigo aquele mesmo que fez aos outros aquela mostrança para o altar e para o Céu e um seu irmão com ele. Fez-lhe muita honra e deu-lhe uma camisa mourisca e ao outro uma camisa destoutras.
E, segundo o que a mim e a todos
pareceu, esta gente não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, senão entender-nos,
porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer, como nós mesmos, por onde nos
pareceu a todos que nenhuma idolatria, nem adoração têm. E bem creio que, se
Vossa Alteza aqui mandar quem entre mais devagar ande, que todos serão tornados
ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir
clérigo para os baptizar, porque já então terão mais conhecimento de nossa fé,
pelos dois degredados, que aqui entre eles ficam, os quais hoje também
comungaram ambos.
Entre todos estes que hoje vieram,
não veio mais que uma mulher moça, a qual esteve sempre à missa e a quem deram
um pano com que se cobrisse. Puseram-lho a redor de si. Porém, ao assentar, não
fazia grande memória de o estender bem, para se cobrir. Assim, Senhor, a
inocência desta gente é tal que a de Adão não seria maior, quanto a vergonha.
Ora veja
Vossa Alteza se quem em tal inocência vive se converterá ou não, ensinando-lhes
o que pertence à sua salvação.
Acabado isto, fomos assim perante
eles beijar a Cruz, despedimo-nos e viemos comer.
Creio, Senhor, que com estes dois
degredados ficam mais dois grumetes, que esta noite se saíram desta nau no
esquife, fugidos para terra. Não vieram mais. E cremos que ficarão aqui, porque
de manhã, prazendo a Deus, fazemos daqui nossa partida.
Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra
o sul vimos até outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto
houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas
por costa. Tem, o longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, delas
vermelhas, delas brancas; e a terra por cima toda chã e muito cheia de grandes
arvoredos. De ponta a ponta, é tudo praia-palma, muito chã e muito formosa.
Pelo
sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não
podíamos ver senão arvoredos. que nos parecia muito longa.
Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem 1ho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados, como os de Entre Doiro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá.
Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem 1ho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados, como os de Entre Doiro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá.
Águas
são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo aproveitar,
dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem. Porém o melhor fruto, que dela se
pode tirar me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal
semente que Vossa Alteza em ela deve lançar.
E que aí não houvesse mais que ter
aqui esta pousada para esta navegação de Calecute, isso bastaria. Quanto mais
disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a
saber, acrescentamento da nossa santa fé.
E nesta maneira, Senhor, dou aqui a
Vossa Alteza conta do que nesta terra vi. E, se algum pouco me alonguei, Ela me
perdoe, pois o desejo que tinha de tudo vos dizer, mo fez pôr assim pelo miúdo.
E pois que, Senhor, é certo que,
assim neste cargo que levo, com em outra qualquer coisa que de vosso serviço
for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me
fazer graça especial, mande vir da ilha de São Tome a Jorge de Osório, meu
genro - o que d' Ela receberei em muita merçê.
Beijo as mãos de Vossa Alteza.
Deste Porto Seguro, da vossa Ilha da
Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.
Pero
Vaz de Caminha
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