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Blog para apresentação de textos e desenvolvimento de práticas relacionadas à produção, manipulação, seleção, gerenciamento e divulgação de trabalhos de confecção de textos dos alunos e alunas do Professor Dr. Erivelto Reis, mediador, orientador e coordenador das atividades desenvolvidas no Blog, que tem um caráter experimental. Esse Blog poderá conter textos em fase de confecção, em produção parcial, em processo de revisão e/ou postados por alunos em fase de adaptação à seleção de conteúdo ou produção de textos literários.

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Antologia 2 - Ruy Espinheira Filho






O QUE LER NA CORRESPONDÊNCIA SENTIMENTAL

Ruy Espinheira Filho

Não o papel
pautado de azul;
não a  escrita
traçada em azul.

A data, o
envelope: não.
Não: a mancha
do carimbo, a metáfora.

Mas o jeito
da mão escriba,
invisa,
os lagos dos olhos

e o vasto que o íntimo
faísca, deflágrima
num espaço mais amplo
que o pintado de azul.

Heleóboro (1966-1973) Parte I: Longe de Sirius
in: Poesia Reunida e Inéditos (1966-1998) – 2ª edição – Record [p. 13]






CIRCULAÇÃO AMOROSA
Ruy Espinheira Filho

Cuidava que o amor já se findara,
até vê-lo de face, recomposto
entre asfalto e edifício, nuns alindes
de tempo muito outrora merecido.
Cuidava que carpir só me restava,
diante de impassíveis formas neutras,
o meu próprio pretérito exilado
na mais interior e inacessível
ilha que me permito, enquanto a bruma
delia-me, no peito, a tatuagem
celebrante de ingênuos madrigais
compostos entre beijo, espada e rosa.
Cuidava me tornar, fonte exaurida,
um somente lugar no descaminho,
cemitério de seixos, sem o móbil
que cumpre o ser do rio e seu destino.
E nem mais matinava nos mundéus:
a espreita, o soslaio, o sutil
em que se guarda amor no anteminuto
de quando a nossa posse é consumada.
E onde nos consumimos. Ah, cuidava
ser a coisa maninha (alma ou carne)
tudo o que finalmente me compunha,
era eu-mesmo, repleto, concluído.
Como se, antese oculta, vindo amor
fosse momento em branco o onde se enflora

nosso endereço escrito no infinito.

in: Poesia Reunida e Inéditos (1966-1998) – 2ª edição – Record [p. 26]

3 - Autoridade
Ruy Espinheira Filho
In.: Heleóboro (1966-1973) II Música pretérita [p. 44 - 1998]
O Dr. Juiz de Direito
decidido
mandou prender o bêbado
mandou prender o desordeiro
mandou prender o assassino
e uma vez proibiu os bodoques
para proteger as vidraças.
Mas no fundo das noites
os lobisomens
uivaram e vagaram impunemente
até o fim.


NO BANCO DO JARDIM
Ruy Espinheira Filho

aos rapazes de 1964

No banco do jardim
viajávamos ao dia.
A um dia além dos galos
que exalavam a manhã.
A um dia além do dia
que nos dissolvia
no banco do jardim.

Nada sabíamos
das estrelas sobre nós,
nem das brancas formas
nevoentas, frias,
de mortos inconformados
à espreita na treva.
Sabíamos do chão,
seu barro, sua pedra.
Sabíamos dos pés
do homem
                       no chão.
Sabíamos do homem,
seu passo, seu pulso.
Sabíamos no peito
do homem: sua nuvem,
seus fogos e seu
recôndito marulho.

No banco do jardim
já nada se vê
do tempo arquitetado
palavra a palavra;
do homem do sonho
com o rosto iluminado
na tenda comum
sobre o campo semeado.


No banco do jardim
o silêncio monta guarda
à nossa ausência.
                                Nada fala
do peso de aço nos gestos
não mais alados.
De como é rouca a voz
ensanguentada.
As sombras Luminosas (1975-1980) – 2. O inquilino do incêndio
in: Poesia Reunida e Inéditos (1966-1998) – 2ª edição – Record [p. 123-124]


TERCEIRA ELEGIA URBANA
Ruy Espinheira Filho


Escuto o vento pesado
que vem ferir a janela:
hálito da cidade, onde
navegam escuras pétalas
de ar morto, mortos perfumes,
ausência de asas, gorjeios
degolados. Nada adianta
fechar janelas e portas
e paredes: esse sopro
destroça a nuvem do peito
e somos só engrenagens
cumprindo a fria tarefa
de edificar o trovão
da cidade.
                        Sem saber
que para nós, quase todos,
esse amplo ruído é
uma forma de silêncio.

Como o crepitar das chamas
para o inquilino do incêndio.
As sombras Luminosas (1975-1980) – 2. O inquilino do incêndio
in: Poesia Reunida e Inéditos (1966-1998) – 2ª edição – Record [p. 136]







SOBRE O AUTOR: 

https://academiadeletrasdabahia.wordpress.com/2007/04/28/ruy-espinheira-filho/



Ruy Alberto d’Assis Espinheira Filho nasceu em Salvador, Bahia, no dia 12 de dezembro de 1942, filho de Ruy Alberto de Assis Espinheira, advogado, e Iracema D’Andréa Espinheira, de ascendência italiana. Passou a infância em Poções e a adolescência em Jequié, cidades do Sudoeste baiano. De volta a Salvador, em 1961, estudou no Colégio Central da Bahia e, levado pelo poeta Affonso Manta, que conhecia desde Poções, ingressou no grupo boêmio capitaneado pelo poeta Carlos Anísio Melhor. Ainda nos anos 60, começou a publicar na revista Serial, criada por Antonio Brasileiro, e se iniciou no jornalismo — como cronista da Tribuna da Bahia (1969-1981), onde também trabalhou como copidesque e editor (1974-1980). Colaborou ainda com o Pasquim, como correspondente na Bahia (1976-1981), e foi contratado como cronista diário do Jornal da Bahia (1983-1993). Atualmente assina artigos quinzenais em A Tarde. Convidado pela Fundação Biblioteca Nacional, representou o Brasil na Feira do Livro de Frankfurt, em 2007, e fez parte da Comissão Julgadora do Prêmio Camões de 2008.

Graduado em Jornalismo (1973), mestre em Ciências Sociais (1978) e doutor em Letras (1999) pela Universidade Federal da Bahia, UFBA, e doutor honoris causa pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, UESB (1999), Ruy Espinheira Filho é professor associado do Departamento de Letras Vernáculas do Instituto de Letras da UFBA, membro da Academia de Letras de Jequié e da Academia de Letras da Bahia. Publicou 11 livros de poemas, 8 de ficção e 3 volumes de ensaios literários. Lançou ainda o CD Poemas, gravado pelo próprio autor, com 48 textos extraídos de seus livros, além de alguns inéditos (2001). Contos e poemas seus foram incluídos em diversas antologias, no Brasil e no exterior (Portugal, Itália, França, Espanha e Estados Unidos).
Obras publicadas
POESIA
• Poemas (com Antonio Brasileiro). Feira de Santana-BA: Edições Cordel, 1973.
• Heléboro. Feira de Santana-BA: Edições Cordel, 1974.
• Julgado do vento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
• As sombras luminosas. Florianópolis: FCC Edições, 1981. Prêmio Nacional de Poesia Cruz e Sousa.
• Morte secreta e poesia anterior. Rio de Janeiro: Philobiblion/INL, 1984.
• A guerra do gato (infantil). Salvador: Jornal da Bahia, 1987; 2ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
• A canção de Beatriz e outros poemas. São Paulo: Brasiliense/Jornal da Bahia, 1990.
• Antologia breve. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro (col. Poesia na UERJ), 1995.
• Antologia poética. Salvador: Copene/Fundação Casa de Jorge Amado, 1996.
• Memória da chuva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996; 3ª impressão 1999. Finalista do Prêmio Nestlé de Literatura Brasileira e do Prêmio Jabuti, ambos em 1997; Prêmio Ribeiro Couto — União Brasileira de Escritores —, 1998.
• Livro de sonetos. Feira de Santana-BA: Edições Cordel, Coleção Poiuy, 1998.
• Poesia reunida e inéditos. Rio de Janeiro: Record, 2ª ed., 1998.
• Livro de sonetos. 2ª. ed. rev. ampl. e il. Salvador: Edições Cidade da Bahia/Capitania dos Peixes, 2000.
• A cidade e os sonhos/Livro de sonetos. Salvador: Edições Cidade da Bahia/Fundação Gregório de Matos, 2003.
• Elegia de agosto e outros poemas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. Prêmio Academia Brasileira de Letras de Poesia, 2006. No mesmo ano, Prêmio Jabuti (2° lugar), da Câmara Brasileira do Livro, e “Menção Especial” do Prêmio Cassiano Ricardo – UBE/RJ.
• Romance do sapo seco: uma história de assombros. Salvador: Edições Cidade da Bahia, 2005.
• Sob o céu de Samarcanda. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009. Finalista do Jabuti e indicado ao Prêmio ugal Telecom, 2010.
• Livro de canções e inéditos. Salvador: P55 edições, 2011.
• Viagem & outros poemas. Salvador: P55 edições, 2011.
• A casa dos nove pinheiros. São Paulo: Dobra Editorial, 2012. Indicado ao Prêmio Portugal Telecom, 213.
• Estação infinita e outras estações – poesia reunida. Rio de Janeiro, 2012.
• Afonso Manta (org.). Salvador, Coleção Mestres da Literatura Baiana, 2013
FICÇÃO
• Sob o último sol de fevereiro (crônicas). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.
• O vento no tamarindeiro (contos). Rio de Janeiro: Codecri, 1981.
• Ângelo Sobral desce aos infernos (romance). Rio de Janeiro: Philobiblion/Fundação Rio, 1986 (2º lugar no Prêmio Rio de Literatura — 1985).
• O rei Artur vai à guerra (novela). São Paulo: Contexto, 1987 (finalista do Prêmio Bienal Nestlé, 1986).
• O fantasma da delegacia (novela). São Paulo: Contexto, 1988; 2ª ed. 1989.
• Os quatro mosqueteiros eram três (novela). São Paulo: Contexto, 1989.
• Últimos tempos heróicos em Manacá da Serra (romance). Belo Horizonte, Oficina de Livros, 1991.
• Um rio corre na Lua (romance). Belo Horizonte, Leitura, 2007.
• De paixões e de vampiros: uma história do tempo da Era (romance). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.
• Andrômeda e outros contos. Salvador: Caramurê, 2011. 2ª Impressão 2013.
ENSAIO
• O nordeste e o negro na poesia de Jorge de Lima. Salvador: Fundação das Artes/Empresa Gráfica da Bahia, 1990.
• Tumulto de amor e outros tumultos — criação e arte em Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 2001.
• Forma e alumbramento — poética e poesia em Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: José Olympio/Academia Brasileira de Letras, 2004.
PARTICIPAÇÃO EM ANTOLOGIAS
• 25 poetas/Bahia/de 1633 a 1968. Salvador: Atelier Planejamento Gráfico/Desc, 1968.
• Breve romanceiro do Natal. Salvador: Edit. Beneditina Ltda., 1972.
• Contos jovens (nº4). São Paulo: Brasiliense, 1974.
• Carne viva — 1ª Antologia Brasileira de Poemas Eróticos. Org. de Olga Savary. Rio de Janeiro: Anima, 1984.
• Artes e ofícios da poesia. Org. de Augusto Massi. São Paulo/Porto Alegre: Secretaria Municipal de Cultura do Município de São Paulo/Artes e Ofícios, 1991.
• Sincretismo — a poesia da geração 60, introdução e antologia. Org. e introd. de Pedro Lyra. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995.
• O conto baiano contemporâneo. Org. de Valdomiro Santana. Salvador: EGBA/Secretaria da Cultura e Turismo, 1995.
• A poesia baiana no século XX (Antologia). Org., introd. e notas de Assis Brasil. Salvador/Rio de Janeiro: Fundação Cultural do Estado da Bahia/Imago, 1999.
• Vozes poéticas da lusofonia. Seleção de textos de Luís Carlos Patraquim. Sintra: Câmara Municipal de Sintra/Instituto Camões, 1999.
• 18+1 poètes contemporains de langue portugaise (édition bilingue). Seleção de Nuno Júdice, Jorge Maximino e Pierre Rivas; traduções de Isabel Meyrelles, Annick Moreau e Michel Riaudel. Paris: Instituto Camões/Chandeigne,2000.
• Antologia de poetas brasileiros. Seleção e coordenação de Mariazinha Congílio. Lisboa: Universitária Editora, 2000.
• A paixão premeditada – poesia da geração 60 na Bahia. Seleção, organização, introdução e notas de Simone Lopes Pontes Tavares. Salvador: Fundação Cultural do estado da Bahia/Imago, 2000.
• Antologia de poesia contemporânea brasileira. Organização de Álvaro Alves de Faria. Coimbra: Alma Azul/Ministério da Cultura/Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, 2000.
• O conto em vinte e cinco baianos. Organização, prefácio e notas de Cyro de Mattos. Itabuna (Bahia): Editus, Coleção Nordestina, 2000.
• Os cem melhores poetas brasileiros do século. Seleção de José Nêumanne Pinto. São Paulo: Geração Editorial, 2001.
• Os cem melhores poemas brasileiros do século. Organização, introdução e referências bibliográficas de Italo Moriconi. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
• Poetas da Bahia — Século XVII ao Século XX. Organização de Ildásio Tavares, notas biobibliográficas de Simone Lopes Pontes Tavares. Rio de Janeiro: Imago/FBN, 2001.
• 100 anos de poesia – um panorama da poesia brasileira no século XX. 2 v. Organização de Claufe Rodrigues e Alexandra Maia. Rio de Janeiro: O Verso Edições, 2001.
• Antologia da poesia brasileira/antologia de la poesia brasileña. Organização e introdução de Xosé Lois García. Santiago de Compostela – Galiza: Edicións Laiovento, 2001.
• Poesia brasileira do século XX – dos modernos à actualidade. Seleção, introdução e notas de Jorge Henrique Bastos. Lisboa: Antígona, 2002.
• Poesia straniera – portoghese e brasiliana. Organização de Luciana Stegagno Picchio. Roma: Grupo Editoriale L´Espresso S.p.A., 2004.
• Poesia brasileira hoje. Introdução e organização de Alexei Bueno. Santiago de Compostela: Danú Editorial, 2004.
• El mundo al outro lado (Ochenta fotografias para ochenta poetas). Espanha: Junta de Castilla y León, 2004.
• Antologia panorâmica do conto baiano – século XX. Organização e introdução de Gerana Damulakis. Coleção Nordestina – Editus, Editora da UESC, Ilhéus, Bahia, 2004.
• Os rumos do vento/Los rumbos del viento (Antologia de poesia). Coordenação de Alfredo Pérez Alencart e Pedro Salvado. Salamanca: Câmara Municipal do Fundão/Trilce Ediciones, 2005.
• Quartas histórias – contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa. Organização de Rinaldo de Fernandes. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.
• Ficção – histórias para o prazer da leitura. Organização e introdução de Miguel Sanches Neto. Belo Horizonte: Editora Leitura, 2007.
• Contos para ler no bar. Organização e introdução de Miguel Sanches Neto. Rio de Janeiro: Record, 2007
• Traversée d’ Óceans – Travessia de Oceanos. Voix poétiques de Bretagne et de Bahia – Vozes poéticas da Bretanha e da Bahia. Edição bilíngue, traduções de Dominique Stoenesco. Paris: Lanore, 2012.
EM CD
•“História”. Leitura de Maria Barroso. Vozes poéticas da lusofonia. Sintra: Gravisom, 1999.
• Poemas. Leitura do autor. Salvador: Grandes Autores/Capitania dos Peixes, 2001.

 Poema: Do amor 

https://www.youtube.com/watch?v=cdbdJBP-RoU


DO IMPORTANTÍSSIMO SITE WWW.ALGUMAPOESIA.COM.BR 
http://www.algumapoesia.com.br/poesia/poesianet018.htm
http://www.algumapoesia.com.br/poesia3/poesianet284.htm



O poeta da memória
Ruy Espinheira Filho



CANÇÃO DA MOÇA DE DEZEMBRO


A moça dança comigo
nessa noite de dezembro.
Na sala onde giramos
se alguém mais há não me lembro.

O ondear da moça ondeia
uma melodia ainda
mais doce que a da vitrola
— e uma alegria vinda

dessa doçura me envolve.
Cabe bem no meu abraço
esse perfume com que
vou girando e em que me abraso

em meus quinze anos (a moça
terá, talvez, dezessete
ou dezoito). Como a valsa,
a vida o melhor promete.

E já oferta: esse corpo
a cada instante mais perto.
Ao qual responde meu corpo,
como nunca antes desperto.

E a moça vai-me queimando
em seu hálito, afogando-me
nos cabelos, e nos olhos
luminosos siderando-me!

E eis que, dançando, saímos
além da sala e do tempo.
E dançando prosseguimos
sempre que sopra dezembro,

nos mesmos giros suaves,
nos mesmos ledos enganos:
eu, o antigo rapaz,
e a moça, morta há treze anos.





BLIN
D BORGES 
        La vasta y vaga y necesaria muerte. 
               Jorge Luis Borges: Blind Pew 

A vasta e vaga morte, esse outro sonho,
não é só outro sonho: é a mais remota
ilha de ouro a que nossa derrota
nos leva, inexorável, sonho a sonho.

Latidos pelos cães, sonho após sonho,
sonhamos. Esta é a vida, a vela, a rota
do homem: sonhar. E em áurea praia ignota
sonha o que sonha o sonhador, que é sonho.

Isto é o que pulsa em nós: o ansiado ouro
— distante e aqui, no coração —, tesouro
cuja procura tece a nossa sorte;

rumo que a alma singra e sagra em ouro
até chegar enfim a esse tesouro
incorruptível que nos sonha a morte.

 
poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2003
•  Ruy Espinheira Filho
    In Poesia Reunida e Inéditos (1966-1998)
    
Editora Record, 2a. ed.
    Rio de Janeiro, 1998




Com Pessoa e Sá-Carneiro
Ruy Espinheira Filho


DE SÚBITO, DO NADA, UMA CARTA

1
Sá-Carneiro disse, em carta, não incomodá-lo muito a
                                                          [ possibilidade
de suicídio,
mas a consciência de
ter de morrer forçosamente um dia.
Seu correspondente deve ter pensado em tais palavras
                                                         [ muitas vezes
ao escrever certos versos,
como, por exemplo
(16 anos mais tarde, com a alma já por si conturbada
de Álvaro de Campos)
alguns de Tabacaria,
nos quais observou que o dono da loja morreria,
como ele próprio,
um deixando a tabuleta, o outro versos,
que a certa altura também morreriam,
como morreria depois a rua onde estivera a tabuleta
e a língua em que foram escritos os versos,
e, por fim, o planeta girante em que tudo isto se deu.
Sim, tais reflexões já tumultuavam Sá-Carneiro,
mas com menos longo sofrimento,
porque logo soube livrar-se delas com
cinco frascos de arseniato de estricnina
em 26 de abril de 1916,
aos 26 anos de idade.
às 8 da noite, no Hotel Nice,
Paris. E assim
terminou o tormento do Esfinge Gorda,
como certa vez se definiu.
E que ainda mais gorda e com mais mistérios de esfinge ficou,
após a morte,
avolumando-se a ponto de mal caber no caixão,
tornando definitivamente impossível que seu enterro fosse levado sobre um burro,
como pedira num poema,
embora tivesse lembrado
(como se antevendo sua última vontade
não sendo respeitada)
que a um morto nada se recusa,
e insistindo mesmo, peremptório:
E eu quero por força ir de burro.(Não, ninguém se moveu para encontrar um burro capaz
de tal façanha,
ainda que não 
 como pedido 
ajaezado à andaluza.Sim, a um morto tudo pode ser
recusado.)
 

Yves Tanguy (1900-1955), americano, The furniture of time
2
Não sei como as linhas acima se escreveram,
pois não havia pensado em nada parecido.
Pelo que recordo, pensara que estava velho,
não propriamente por me sentir assim,
mas por constatar que de então a agora
passara muito tempo.
É a lógica, bastante desagradável:
se muito tempo passou desde a nossa juventude
não há o que discutir: estamos velhos.
Quanto mais tempo, mais velhos.
Sem dúvida, o que de melhor havia no Paraíso,
antes da descoberta do fruto do bem e do mal,
era a ausência de lógica. Não houve nenhuma lógica
na Criação,
as possíveis justificativas do Criador não têm lógica.
Apenas, entediado por tamanha Eternidade,
Ele resolveu brincar de Deus. E, como não havia
nenhuma lógica em tudo isso
(pois só uma absoluta falta de lógica admitiria a criação de algo
tão tentador que poria fatalmente em risco o equilíbrio do Éden),
deu no que deu.
 
Salvador Dalí (1904-1989), catalão, A persistência da memóriaSalvador Dalí (1904-1989), catalão, A persistência da memória
3
Coisas assim é que eu pensava,
quando saltou do nada a carta do poeta
para outro poeta.
Assim me tem sido a vida com frequência:
tarda (às vezes indefinidamente) no que espero
e de súbito serve
o inesperado.
Tudo bem, contando que não venha a lógica
deduzir que eu tenha forçosamente de estar velho
já que de então a agora muito tempo passou.
O tempo, que se oferece ironicamente em Ontem
(que já não é),
Hoje
(que acabou de ser)
e Amanhã
(que, se chegar, não chegará,
pois logo será o que acabou de ser,
o que já não é).
Enfim, envolvido em incômodos
similares aos meus,
e em linguagem bem melhor,
suspirou Ricardo Reis: ... e quanto pouco falta
para o fim do futuro!
 

Joan Miró (1893-1983), catalão, O caçador

4
Ah, o quanto pouco falta...
Aliás, uma característica do tempo: subtrair-se avaramente,
sobretudo quando gostaríamos que permanecesse mais...
Difícil acreditar que faz pouco,
muito pouco,
estávamos todos aqui...
E então, de súbito,
tivemos e temos que
forçosamente morrer...
5
Bem, Sá-Carneiro resolveu tudo por conta própria,
interrompendo o que sentia como apenas cruel alongamento
                                                                       [ do tempo;
apagando os remorsos que eram como
terraços sobre o Mar,
deixando-nos as palavras com que também gostaríamos de abrir
docemente
a nossa noite:
Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou.
 
poesia.netwww.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2012

Foto: Academia de Letras da Bahia

Ruy Espinheira Filho
•  A casa dos nove pinheiros
   
 Dobra Editorial, São Paulo, 2012
______________
* Francisco Carvalho, "Pomar Alheio",
in 
O Silêncio é uma Figura Geométrica (2002)



ANTOLOGIA 1: NEIDE ARCHANJO


"Antologia" nasce do desejo de reler, de reconhecer, de reunir textos expressivamente conhecidos de autores e autoras frequentemente citados, homenageados e de outros e outras aos quais  os lapsos, ora relacionados aos textos, ora aos autores e autoras, por parte dos críticos, estudantes, pesquisadores e leitores inexplicavelmente possam atingir. É um desejo de homenagem, de memória e de reverência. Apenas isso. "Silêncio. Cante-se o fado." - Prof. Dr. Erivelto Reis (editor do blog)



ARCHANJO, NEIDE. Todas as horas e antes: poesia reunida. São Paulo: A girafa, 2004.



ANTOLOGIA 1 – 


NEIDE ARCHANJO

A NÓS [p. 18]
Para que não esqueçam

os nomes daquelas
que foram ofendidas
em sua condição primeva,
este poema.

Suas conquistas hão de ficar
para que as gerações celebrem
os feitos valorosos
em águas e terras,
obras e vozes e amores
filhos
amores refletidos.

Povoem este poema
fêmeas punidas
pelo que tiveram de melhor:
seus assombros
suas epifanias

O tempo em degredo falará
dos roteiros esquecidos
de cada mulher
abismo de se saber sozinha
e, todavia, ressoar.





Epifanias (1999). Primeiro livro que atribui um título a cada poema, Neide Archanjo, segundo Antonio Carlos Secchin, “retorna à terra – e também às raízes, às flores e aos frutos nesta bem plantada coletânea, epifânica aventura rumo ao poético”.Pequeno oratório do poeta para o anjo (1977). Caracterizado pela melodia e harmonia dos versos, é um livro de poemas curtos e encadeados, que consagram o amor para além da dor da perda.Tudo é sempre agora (1994). A morte, a vida, o amor e a permanência da poesia; os sentimentos que moldaram a experiência da poeta frente à morte de seu único irmão.As marinhas (1984). Poema épico composto por quatro anos, parte no Brasil, parte em Portugal. Os seus cinco grandes cantos celebram o mar como território de encontro de duas línguas, duas culturas, dois povos em busca de um sentido comum para suas paixões. 

Fonte: https://indicalivros.com/pdf/todas-as-horas-e-antes-volume-1-neide-archanjo#! 



ODE À CASUARINA, 20 [p. 26]


Passo a passo
decompõe-se a casa
Casuarina.
Lembranças
e um silêncio
que jamais sentirei
- talvez só na morte –
traçam um mordaça
do cristo Redentor na sala
à jaboticabeira
na janela deste quarto
que nunca terei.
Cães latem longínquos
gatos pastoreiam despojos
e o jardim sonha
sob a luz da lua
que em breve deixarei.
Mortos retratos móveis
cartas livros quadros
amores paredes tetos.
Movo o corpo e a cabeça
que o coração entontece
rumo a outro tempo
que este não esquecerei.
Adeus, casa
Casuarina.

Devo-te tanto.








NEIDE ARCHANJO - Poeta, advogada, psicóloga. Paulista, radicada no Rio de Janeiro. Estreou na poesia em 1964, com o livro "Primeiros Ofícios da Memória". Desde então, criou e participou de movimentos como "Poesia na Praça", varais de poesia, espetáculos em teatro, cafés, faculdades, bibliotecas, festivais nacionais e internacionais de poesia e arte. Criou e implantou a Oficina Literária da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo. Foi bolsista da Fundação Calouste Gulbenkian na qualidade de poeta residente, em Portugal. Seus poemas figuram em antologias nacionais e estrangeiras. É considerada pela crítica uma das autoras brasileiras mais significativas da geração que surgiu na década de 60. Foi assessora da Biblioteca Nacional e membro do Conselho Editorial da Revista "Poesia Sempre". Nos anos de 1980 e 2000 recebeu da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) os prêmios de poesia. Foi indicada para o prêmio Jabuti de poesia em 1995, pelo livro "Tudo é Sempre Agora". Os poemas de seu livro "Pequeno Oratório do Poeta Para o Anjo" foram gravados por Maria Bethânia. Possui onze livros publicados, sendo que "Soraya � uma princesa Sefardita" é edição bilíngue, francesa. Em 2005, ganhou o Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras. Em 2006, pela publicação de sua Obra Completa, comemorando 40 anos de poesia, obteve, pela segunda vez consecutiva, o prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras, o Jabuti de Poesia e o Prêmio da Associação Brasileira dos Escritores. 

Fonte: http://www.blocosonline.com.br/literatura/poesia/obrasdigitais/saciedigpv/02/narchanjo06.php 

RESSENTIMENTO [p. 53-54]


Nas rosas da ausência
celebro-te.

Não mais me arrebatas
nem mais me iluminas
Devagar é a perda
que respira.

E bisonho é este poema
que ainda canta
o que já não podes ser.


Em SP com Neide Archanjo, Lygia Fagundes Telles
e a agente literária alemã, Ray-Gude Mertin


Fonte: http://www.bettymilan.com.br/neide-archanjo-lygia-fagundes-telles-e-a-ray-gude-mertin/ 



CONTABILIZANDO [p. 54-55]


Devolve
o primeiro volume do Quixote
perdido no trem.
Cervantes não te pertencia.

E também a Odisséia
já que à Ilíada
eu sabia que nunca
chegarias

Devolve
Os pirilampos da noite do Sena
tuas imagens nos espelhos de Versailles
e o beijo que roubaste do Rodin.

Devolve
o que era meu
e sonhei que pudesse ser teu.
Ah, não podia!

Sabias de poetas
e não de Poesia
estranha carne
vísceras lágrimas dramas
alma ensanguentada
a manchar tua alegria.
Ah, da Poesia não sabias!

Conserva conserva
o verde olhar
os cheiros de paixão
os cachos de cabelo
que mãe Oxum
no Abaeté vela.
E aqueles teus medos de criança.

Devolve o amor
que este não resta
como o pássaro que alojamos
no rosto da janela.


Das páginas do maravilhoso JORNAL DE POESIA 
http://www.jornaldepoesia.jor.br/poesia.html 

Algumas opiniões:


"N.A., sofri o seu Quitote tango e foxtrote, Sofri mesmo — em grande parte pelas ambigüidades admiravelmente construídas nele,eis que neleAntônio Houaissnada quero ver que não tenha sido dominado por sua arte. Ora o lia como expressão de um ser feminino, ora de um masculino, ora de um siriano, ora de um a-hetero-homo-pan-sexual, ora de alguém mininesco,ora de alguém nauseado, ora como esperança,ora como desespero,ora como de iluso,ora de iludido. O que sei é que a sua busca é pungente, porque magoada e doída e magoante e dolente, graças à poderosa expressão que ilumina como se tornada fachos, armas, esporas, alimentos, venenos. Sua procura teve sobre mim o rigor atritante de coisa pensante congrata, inarredável."

Antônio Houaiss

Carlos Drummond de Andrade
" Aqui estou debruçado sobre seu livro Escavações curtindo aquela "admirável epifania/onde o poema se debruça/inominável". Quer nos poemas de largo fôlego, de ‘Sítios,quer na extrema concisão de ‘Fragmentos’, você alcança a justa e vibrante expressão que deixa marca no leitor."

Carlos Drummond de Andrade


"As admiráveis Marinhas de N.A. são uma meditação sobre o Destino, oWilson Martins da autora enquanto pessoa e enquanto brasileira, o da pátria enquanto mito emocional e realidade histórica; e é também uma meditação sobre a poesia enquanto veículo de expressão para o que por outros meios não poderia ser expresso.Tudo se condensa no mesmo mito, o mito do poeta no mundo, mas mundo e poeta sob as suas espécies reais de uma língua literária e de uma integração nacional. A autora domina o instrumento em todas as suas virtualidades técnicas e dá a cada ‘quadro’ a tonalidade própria a estrutura versificatória que exige,as harmônicas que lhe são próprias. As marinhas surpreendem o núcleo substanciado que é ser brasileiro e sabe identificá-lo no ‘correlativo poético’ que lhe corresponde. Tendo estreado em 1964 com Primeiros ofícios da memória, ela evidenciava desde então as mudanças de plano que àquela altura começavam a ser manifestar na poesia brasileira contemporânea. É a ‘poesia cívica’ em sua manifestação mais perfeita, não pode ser ‘cívica’ mas pode ser poesia, Podemos identificar em N.A., sem hesitação, uma das grandes vozes poéticas do nosso tempo, o ‘o contraste’ mineralógico pelo qual se deve verificar o teor de poesia de todos os demais. "

Wilson Martins


Fonte: http://www.jornaldepoesia.jor.br/na.html#opinioes 



A VOLTA DO LOBO [p. 67-68]


Lobo lobo
Canis Lupus Signatus
se a solidão fez-se contigo
como assassinar-te?

Longos são os uivos
longas são as noites
ameaças do tempo
que te ameaça agora
entre trilhas e penhascos
píncaros povoados por teu mito
sombras
e infâncias e estórias
a espreitar o ser
que medroso se apavora
porque ainda és perigo
para quem não soube
fazer-te memória.

Permanecerás, irmão,
eu te asseguro,
pescoço em riste
contemplando o céu
desejando asas
eterno caçados de luas.

Do livro: Epifanias (1999)



Poesia como arte marcial


A Tarde, Salvador, Bahia, Brasil
17/04/2004 


A poeta paulista Neide Archanjo, autora de dez livros, lança este ano, Todas as Horas e Antes, livro que reúne toda a sua poesia, em comemoração aos 40 anos de oficio literário. A editora A Girafa, conhecida pelo tratamento gráfico que propicia às suas edições, é a responsável pela publicação do livro, que vai ser lançado em várias capitais, dentre elas Salvador. Nesta entrevista, Neide Archanjo, considerada pela crítica como uma das autoras mais significativas da década de 1960, fala de seu pioneirismo no movimento Poesia na Praça, da recente edição francesa de seu Pequeno Oratório do Poeta para o Anjo, da sua caminhada poética que afirma – “é grande e quase obscura” – e complementa que o desconhecimento, a apatia diante da literatura, não é privilégio do Brasil. 

José Inácio Vieira de Melo – A sua obra tem obtido da crítica uma grande atenção. Os pareceres sobre a variedade temática são unânimes, dando destaque para o tom lírico da sua poesia. Como se dá o seu processo de criação?

Neide Archanjo – Desde os Primeiros Ofícios da Memória, publicado em 1964, a crítica se deteve sobre meu trabalho. Eu era tão jovem – 24 anos – mas surgia com uma proposta que provocou uma certa comoção. O poeta Paulo Bonfim, o crítico Domingos Carvalho da Silva e a grande poeta, recém-falecida, Hilda Hilst, celebraram minha estréia. Aliás, com a perda de Hilda, completei um ciclo doloroso de perdas daqueles que foram os pilares da minha iniciação poética. Neli Dutra, Mira Schendel, Vilém Flusser e José Luiz Archanjo.
Ao longo desses anos venho buscando alcançar uma variedade não só temática mas também formal, indo do poema longo (O Poeta ItineranteAs Marinhas e o Pequeno oratório do Poeta para o Anjo) aos poemas esparsos, todavia ligados por um tema em comum (EscavaçõesTudo é sempre agoraEpifanias e Todas as Horas). Quanto ao lirismo da minha poesia, creio que é uma conseqüência, o resultado de uma certa maneira de ser, sentir, pensar e agir.


JIVM – O que a faz buscar a variação, tanto no tema quanto na forma?

NA – Não é uma opção racional. A poesia não pode ser submetida a esse tipo de escolha. O que acontece é que se recebe uma notícia poética, uma anunciação que poderá ser transformada ou não numa epifania, isto é, em uma iluminação, em um bom poema.
Isso sim depende do poeta e da sua preparação interior, intelectual, espiritual. É preciso bater, bater a palavra na forja da língua e esperar que ela se revele em todo seu esplendor original, para assim poder-se dizer o indizível.
Diria que os poemas-arautos, aqueles que noticiam que um novo trabalho está surgindo, são placas matrizes, bússolas condutoras do tema e da forma. São nebulosos esses estados, às vezes surpreendentes como revelações do inconsciente individual e coletivo. Cabe ao poeta decifrá-los ou ser devorado por eles.


JIVM – A editora A Girafa acena com o lançamento da sua obra reunida em comemoração aos quarenta anos de estréia. Qual o sentido dessa longa caminhada poética?

NA – Tive a alegria de reencontrar Pedro Paulo Sena Madureira. Ele é editor de minha poesia desde 1980, quando publicou Escavações pela Nova Fronteira. Apenas o lendário editor Massao Ohno, que publicou meus Primeiros Ofícios da Memória, em 1964, pode estar ao seu lado como editor, no sentido pleno de ler, repassar o texto com o autor, apontar deficiências, sugerir, contar, fazer o livro acontecer. Estive em outras grandes editoras, mas editores só Massao Ohno e Pedro Paulo. Daí Pedro Paulo, agora editor de A Girafa em São Paulo, me convidar para publicar minha poesia reunida – 10 livros em um só volume, de mais de setecentas páginas, o que é uma ousadia. A alegria é de saber que ele, eu e a minha poesia resistimos a todos esses anos. Todas as Horas e Antes reunirá minha poesia anterior e o novo livro. Será uma bela edição com tratamento gráfico de Lucila Sartori que cuidará das capas e será lançado em diversas capitais, prioritariamente em São Paulo, Rio e Salvador. Escolhi setembro, mês de meu aniversário e de paz primaveril, para o lançamento em Salvador. Detalhes a gente conta depois.
A caminhada poética é grande e quase obscura. Depois de quase 40 anos de publicações, prêmios, entrevistas na mídia, teses sobre o trabalho, o poeta é sempre um desconhecido. Quando é apresentado, fora de seu círculo, social e mesmo literário, ele tem que repetidamente apresentar sua biografia. Mas eu fui me fazendo, em fazendo a poesia. Note que esse desconhecimento, essa apatia diante da literatura, não é privilégio do Brasil. Li que os britânicos desconhecem as obras literárias do sue país e que as pesquisas provam que as frases de séries de TV, são mais famosas para eles que trechos de Shakespeare ou Oscar Wilde. Se isso está acontecendo na Inglaterra, imagine no Brasil...


JIVM – Em 2003, seu livro Pequeno Oratório do Poeta para o Anjo ganhou tradução para o francês. Qual foi o procedimento para a publicação?

NA – O Pequeno Oratório do Poeta para o Anjo já nasceu privilegiado com a oferta amiga de Maria Bethânia de gravá-lo e fazer uma apresentação, dirigida por Bia Lessa, na Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro para um público de quase mil pessoas. Como Bethânia, até então, não havia dito nenhum poeta, exceto o mestre Fernando Pessoa, foi uma honra incomensurável, uma demonstração de amor, respeito e reverência à minha poesia. Ninguém escolhe Maria Bethânia, apenas é escolhido por ela. O Anjo voou e foi parar em Paris. As Editions Eulina Carvalho, dirigida pela pernambucana Selda Carvalho e a francesa Véronique Basset – excelente tradutora – me convidaram e a publicação saiu em outubro de 2003 com lançamentos em Paris. Agora, já estão em curso outras traduções de livros meus e posso assegurar a competência e o profissionalismo da editora que já publicou textos de Clarice Lispector, Marilene Filinto, Ferreira Gullar.


JIVM – No início de sua carreira literária, década de 1960, você foi uma das fundadoras do movimento Poesia na Praça, em São Paulo, que depois se alastrou por todo o país. O que movia os jovens a irem ás praças recitarem poesia?

NA – O movimento Poesia na Praça foi criado por meu irmão José Luiz Archanjo, Ilka Brunhilde, Renata Pallottini e eu. Consistia em estender varais – poemas escritos em cartolina, expostos com pregadores em toscos fios, ligados entre as árvores da Praça da República em São Paulo aos domingos, na primeira feira hippie do Brasil. Era 1969 – plena ditadura do governo Médici – e esse era um compromisso político-social de resistência e oposição. Não éramos guerrilheiros, nem seqüestradores de embaixadores. No mínimo tínhamos que contestar a ditadura de alguma forma. Originária da Faculdade de Direito da USP, fui a primeira mulher a ocupar a tradicional tribuna do Largo de São Francisco e fundar o jornal feminino A Presença. Minha arma era a poesia. Era preciso usá-la e assim o fiz tenazmente.


JIVM – E, hoje, como você vê os movimentos de poesia pelo país?

NA – Hoje não há movimentos de poesia pelo país. Há poetas esparsos e pequenos grupos dispersos, agora inseridos na internet, nos blogssites, onde circula uma poesia ávida por divulgação, às vezes razoável, outras desprezível. O momento é esse e há que reconhecê-lo.
Mas nada tem tanta importância, porque se estamos caminhando para uma nova Idade Média, como prevêem alguns, nossos textos hão de ficar adormecidos por muitos séculos, até um novo Renascimento acontecer. E haja humildade para aceitar isso!


JIVM – Como se deu a paixão pela poesia do alagoano Jorge de Lima?

NA – Ele me foi apresentado por Neli Dutra, escritora gaúcha, mestra de toda uma geração em São Paulo que ia do costureiro Denner ao jovem Jô Soares. Ensinou a Hilda Hilst mitologia e segredos da alquimia. Aos 23 anos tive o privilégio de ser sua discípula e receber dela a edição completa de Jorge de Lima com suas anotações pessoais. Tornou-se meu missal para sempre!


JIVM – Qual a sua mensagem aos poetas que estão ensaiando os primeiros passos?

NA – Às vezes penso em todos os poetas que estrearam comigo em 1964. O tempo resguardou muito poucos. Para quem está começando agora sugiro disciplina (obstinato rigori), humildade e paciência. Não adianta querer aparecer antes da hora. A poesia é uma arte marcial, tem recuos e avanços exatos. E é sabiamente Zen. Sem mestres, o discípulo se perde, mas ele só encontrará o mestre, quando estiver pronto. Então é bom ir cuidando disso: leituras, ato-conhecimento, viagens, vivências. Tentar ser o seu poema vivo.
Cartas a um jovem poeta de Rainer Maria Rilke deveria ser o livro de cabeceira de quem pretende escrever poesia seriamente. Um pouco de Fernando Pessoa, Ginsberg, Eliot, Emily Dickson, Borges, Silvia Plat, muito dos clássicos, sobretudo os gregos e, é claro, todos os nossos, dos românticos aos contemporâneos, nem pensar em esquecer Jorge de Lima, Drummond, Bandeira, Vinícius, Cabral, Guimarães Rosa e tantos, tantos outros mais.

José Inácio Vieira de Melo é poeta, autor dos livros Códigos do Silêncio (2000), Decifração de Abismos (2002) e A terceira romaria (no prelo). Organizador de Concerto lírico a quinze vozes – uma coletânea de novos poetas da Bahia (no prelo). 

Fonte: http://www.jornaldepoesia.jor.br/jinacio8.html


SONATINA [p. 71-72]

E no entanto eras meu irmão.
Aos setenta anos poderíamos ter sido
um senhor e uma senhora
de braços dados passeando por Paris.

Ah, ver-te envelhecer!

Súbito vences a morte
e estás tão presente
como no dia em que nasceste
e te abracei.

Então és poema
aquilo que me escapa
e todavia conservei.

Do livro: Epifanias (1999)


OFF (p. 76-77)

Dos teus braços
talvez dos teus olhos
vem esta ternura
que minha alma
alcança.
Mas pouco sabes de mim.

O amor nunca sabe
e é melhor assim.

Do livro: Epifanias (1999)


NE ME QUITTES PAS [p.79]


Um amor pode acabar
ir-se embora pela vida afora
ainda que poderoso e belo.
Um amor pode acabar,
acredite,
sem que os amantes saibam das fraturas,
pois, parado, ele se move
rumo à procuras.
Um amor pode acabar
entre as pequenas delícias
esquecidas
que são os dias partidos
entre as belezas e feridas.
Um amor pode acabar
mentindo
ao som de Cole Porter
(quem diria...)
sonhando no convés
onde a lua sorri
arrepiando o mar.
Um amor pode acabar,
perdoe,
no avesso do recomeçar.
Mas é quando nem vê
o próprio olhar
é que um amor pode acabar.

Do livro: Epifanias (1999)


OS VINTE ANOS [p. 82-83]

A vida me amedronta
não à jovem
plena de graça
que ao sol se entrega
ou ao surfista
que impune desenha
arabescos
na concha das ondas
buscando a pérola.

Eles compõem o dia
cacheados cabelos
expostas alegrias.

Em vão sorvo a claridade
e tento despregar-me da areia.
O mar ri
da falsa sereia.

Do livro: Epifanias (1999)


 ESCREVENDO [p. 102]

As palavras fenecem
descem à tumba
rejuvenescem.
Enganam a ponta do lápis
o escritor
e o teclado do computador.
As palavras são déspotas
exigem escolhas apaixonadas.
Corremos ao seu encalço.
mas pronunciadas
ei-las fora do laço.

Do livro: Epifanias (1999)

***
Do livro Tudo é sempre agora (1994)

DA MORTE 
[p. 134]

Não estamos perdidos.
Isto é um milagre. Ter corpo
uma casa um amigo
manter nas veias o sangue aceso
é um milagre. Saber que houve alguém
que nos acariciou
e nos banhou de lágrimas.
no meio da rua
penso nestas dádivas
antes que a lâmina da morte me atravesse.


***
Do livro Tudo é sempre agora (1994)
[p. 134]

Sob a dor
o poema se protege]e recusa a vergonha da esperança
que a morte tenta apagar.
Chega com seu vento úmido
seu gosto de terra
e sendo passageiro
ele se faz inteiro.

***
Do livro Tudo é sempre agora (1994)

[p.135]

A febre da mão que escreve
a inútil luta contra o tempo
a sensação de ser caçada por alguém
ou alguma coisa
faz-me arder nervo a nervo
inventar uma canção
(como os tártaros
que nas batalhas cantavam)
para afastar a lança rutilante
que um dia
eu sei, me atingirá.

Do livro Tudo é sempre agora (1994)


O AMOR É CAMISA
[p. 156-157]

O amor é camisa
que se carrega sobre o esqueleto
sem saber que por dentro
está cerzido o Tempo.

E passa o Tempo por dentro
das pedras não decifradas
dos mapas portugueses
do oceano que já foi mar
e antes rio
do assassinato do fundista solitário.

E passa o Tempo por dentro
de Publio Virgilio Marão
sonhando Enéias
de Ragusa no Adriático
dos navegantes de Urano e Netuno
de certos tons de abril
que será sempre e estranhamente
abril.

E passa o Tempo por dentro
do bisavô Affonso Donato
visitado por um anjo
no dia da sua morte.

E passa o Tempo por dentro
da Quinta Sinfonia de Mahler
das janelas de Veneza
dos 150 Salmos de Israel
e daquilo que se amou de verdade.

Passa o Tempo por dentro
desta página
como passa o incenso
por dentro do labirinto

de um relógio chinês.


***

Do livro Tudo é sempre agora (1994)
Do amor

Assim o amor resiste:
um brilho furtivo
no tear da alma.

***
Do livro Tudo é sempre agora (1994)
Do amor

[p. 160]
Atrás da curva dos teus ombros
uma chuva caía incessante
um pouco água um pouco bruma.

Mais acima estavam seus teus olhos
duas tâmaras maduras.
Então pensei: que alegria é esta
que a vida não me deu antes?

As tardes passarão esta hora passará
outras esperas outros acontecimentos
hão de turvar meu sangue.
Não hoje.

***
Do livro Tudo é sempre agora (1994)
Do amor

[p. 161]
Neste labirinto
estamos sós
sem fio nem Ariadne
e o amor é um diamante
movendo suas arestas
cumprindo seu destino.

***
Do livro Tudo é sempre agora (1994)
Do amor

[p. 161]

Paisagem é tudo aquilo
que pode ser observado:
as árvores
o que não é humano
o homem arcaico
e certos seres que não são para si.

Os amantes são pura paisagem.

***
Do livro Tudo é sempre agora (1994)
Do amor

[p. 162]

Ah, este desejo de te ter tão perto
ah, esta carícia que a mão prolonga
e não alcança.

Assim como o rio
o amor imagina as suas margens.
Eu imagino as tuas águas.


***

Do livro Tudo é sempre agora (1994)
Do amor


Há em ti um senso remoto de paixão.
Estás no leito como um cavalo
está no campo
entre paisagens e abismos
sonhando os próprios movimentos.
Em êxtase contornas os lençóis
o  poema que nos cobre.
Fulgor nos teus cascos
lírios no teu sangue.

***
Do livro Tudo é sempre agora (1994)
Do amor

[p. 163]

Inusitada noite
em que estar contigo
é como roubar laranjas
no quintal da infância.

***
Do livro Tudo é sempre agora (1994)
Do amor

[p. 165]

Acordo quando falas
e nunca sei o que quero ouvir.
Sei que falas e isso basta
porque esta hora é feliz.
E desejo outras e mais outras
em que dirás tudo o que quero ouvir.

Saudades futuras.

A teu lado caminho quase muda
e estando contente
nunca estou feliz.


***
Do livro Tudo é sempre agora (1994)
Do amor

[p. 166]

Ouso amar o que sequer
és capas de sonhar.

Hoje
vendo-te através da chuva
reconheci meu reino minha casa
e amei-te depressa
com medo deste amor acabar.

Contornos vermelhos
outonos
que nos afastará?


***

Do livro Tudo é sempre agora (1994)
Da poesia
[p. 172-173]

Poesia
grão amargo
entre meus dentes.

***

Longe muito longe
nos confins do universo
e no andamento dos arquétipos
o poema
campo contínuo
reluz
sem forma nem som
apenas ideia.

***

Do livro Tudo é sempre agora (1994)
Da poesia
[p. 173]

No subsolo jaz o poema
prisioneiro sem saída
da palavra não criada
algoz a condená-lo
a um leito de dor e  de silêncio.

***

Do livro Tudo é sempre agora (1994)
Da poesia
[p. 173]

No subsolo jaz o poema
prisioneiro sem saída
da palavra não criada
algoz a condená-lo
a um leito de dor e  de silêncio.

***
Do livro Tudo é sempre agora (1994)
Da poesia
[p. 175]

Conto meus poemas
como um avarento  conta
suas moedas.
Há um comércio entre o poeta
e a folha a ser lavrada.
Porque custa muito um poema.
Cada palavra é o rosto de Deus
e o poeta um vazio ajoelhado.

***
Do livro Tudo é sempre agora (1994)
Da poesia
[p. 177]

Eu e o poema
volúpia e nenhuma calma
algum luxo já apaziguado.
Simplesmente sonhamos
o que a nós dois
foi dado ser sonhado.

***


AS MARINHAS (1984)
CANTO I
PREAMAR

[p. 184]

[Trechos selecionados]

O planeta d’água gira
e com ele gira o mar.
Abraçados os dois
(ritmo amante rotação ondulante)
oscilam e dessa estreita simetria
nascem praias e ilhas
concheados litorais.
Um eixo imaginário
faz a terra e o mar
girar iguais.

[...]
[p.185]

O mundo apenas começava
e nada pressentia o advento destes séculos
onde o homem está sozinho
sem o Verbo
em meio às palavras que o consomem.

Os deuses cantavam a cólera humana
ainda e sempre funesta
postados na encruzilhada dos caminhos
no dorso dos ventos
ou na soleira das portas.

Um silêncio emocionante
contínuo
(não este feito de momentos imprecisos)
atravessava o tempo.

[...]

[p.186]

A poesia dorme nos pomares de água
à espera de instrumentos
navios plumas cavalos
perdida entre os sentimentos azuis
e coisas amarelas.
O sonho que a poesia sonha
incha os poros da terra
e ainda que a palavra não venha
ou um deus qualquer tome do barro
faça poemas e sopre sobre ele o Verbo
o sonho que a poesia sonha
permanece intato à espera.

Degolam animais
que oferecem em sacrifício
às divindades punitivas
que lhes povoam o sono
sentados entorpecidos
nas negras extensões
das negras manhãs.
Antes de partir celebram
Bóreas Zéfiro Notos Euros
infusos nas costas de bronze
invocando sua mansidão.
Choram pelas terras a conquistar
cercados de fantasmas
nuvens sombrosas
amedrontados.

A praia não é o mar.
Eles sabem.
[...]

[p. 187]

Quero que águas
inundem este poema
como o sangue inunda o corpo
barco que navega.

E serão as águas claras
dos momentos claros
as águas escuras
dos momentos escuros
convulsas turvas aneladas
frias mornas paralisantes
calmas largas salinas
portuárias
águas águas águas

Sem estação exata pra nascer
as águas nascem:
no céu
                               nuvens
na terra
lírios
no ser
                               lágrimas suor
                               saliva esperma
                               catarro urina

                               e sangue.




AS MARINHAS (1984)

CANTO II
LITORAIS
[p. 188]

[Trechos selecionados]

[...]

O tempo avança sobre mim
repetido plácido exausto.
Alguém está junto ao mar
vindo da cidade desnecessária.
Um amor lúdico se instala
entre a água salgada
e a presença que a ela se opõe
abrindo um caminho brilhante
que posso ver daqui.
Fende-se então o mar
com seus peixes deslizantes
para acolher a carne
que o penetra
e fazer-se azul dentro dela.

Sem envelhecer
estou mudando
às vezes lentamente
outras com pressa.
Não sou uma móvel criatura
daquelas que erram pelo cais
relembrando coisas desejadas
e repetindo perguntas
que há muito o coração
já não responde.
Mudo como quem se move
rumo a um sítio reservado
onde um outra intensidade
(que ainda não decifro)
cresce.


[p. 189]

Pois existe uma palavra
virgem de sentido
insondável
guardada num regaço que ignoro.
Um nome que custa falar
escondido em pesada armadura
não sei se veneno
vida
ou a solidão da palavra silêncio
em lápis-lazúli
esculpida e secreta.

[...]

[p. 190]
Palavras gritam à minha volta
aderindo à minha pele como sargaços.
Viradas na palma da mão
são paisagens esvaídas impressões
sentimento amalgamado lírica  metamorfose.

Revestem-se de geometrias espinhos
ou simples tons irrisórios
a protegerem-se
porque sendo água por fora
as palavras são mares por dentro.


E circunavego
a grande lembrança
que sei fundada
no oceano.
Em terra
espreito
sua aurora seu crepúsculo
oráculos que me esperam
no horizonte.


   
AS MARINHAS

CANTO III

OCEÂNICO – CAIS DA AGONIA –
LINHA DE FLUTUAÇÃO

[p. 196-197]

OCEÂNICO

Há uma biografia pessoal e coletiva
em algum lugar perdida na memória
procuro aí
procuro no meu sangue
o mapa e o compasso
do sonho peregrino que dará os nomes
das coisas e dos homens.
Assim não mais serei o mareante
condenado a viajar nas velas do poema
terei acesso ao leme onde a vida
estuante e convertida me navega.
A mesma vida agora escafandrista
que emerge com feitos valorosos
e musas de esmeralda em mares recolhidas
luminosos e turvos mares de poesia penetrados
entrevistos em páginas selvagens cavidades espantosas
terraços a dar para o suicídio
material inconsciente a resgatar
ressuscitado entre mortos
e remorsos e tempo perdido e recherches
lidas e vividas em noites delirantes
olhos sempre postos em estrelas
ou nos instrumentos de escrever
adormecidos à minha frente
tão domésticos e sagrados, ignotas armas,
com as quais Camões em outros tempos
mais do que permitia a força humana
espalhou por toda parte os feitos lusitanos

Era uma vez um povo
que olhava para o mar.

[...]

[p. 201]

Era uma vez
um rei menino.
Tinha barcos
tinha mares
tinha ouros e ametistas
a luz do dia
a luz da noite
um reino a perder de vista.

Tinha um corpo de talhe fino
os olhos de puro espanto
e uns sonhos de maldição
cardos de maresia
roendo-lhe o coração.

Ai, ouvidos que não ouviram
ai, alma que não decifrou
os reinos de cristal
que o mar alevantou.

Era um rei predestinado
a dar sementes a dar frutos
último amparo de um povo
vigiado por Castela.
D. Sebastião, D. Sebastião
não magoeis
quem tanto de vós espera
essa gente pequena e pobre
que habita a ponta do mundo
entre azuis de mar e de nuvens
terra distante terra distante
agasalhada de camélias.


[...]

[p. 210]

Aqui diante destes muros
diante desta página
levanto agora
pedra a pedra
e te revelo
pérola sombria.

Então, recomeço a biografia
e roubo-te, levo-te comigo
não para o regresso
rei ou tribo
antes para o mar
aquele que nem viste
tu
magnífica inquietude
tu
o amor
em navegação perpétua
e solitude.

[...]

[p. 214]

E os mortos?
Onde estão os mortos?
Funda ausência
encostada às muralhas
lesma comendo as horas
ovelha que pastor algum
mais pastoreia.

Uma morte escolho entre as demais
para celebrar
a que inda repousa
aquecendo e perturbando
as naves do mosteiro
com um sopro de amor
tão insistente profano e desgraçado
paixão atroz,
a da Castro,
em saudade coroada
por El-Rei D. Pedro.
E houve círios acesos de Coimbra a Alcobaça
tranladação lendária cumprindo o fado
                                                   [triste.

E estás, linda Inês,
posta em sossego
quando uma sobra de dor
vem acordar-te
e desce contigo até as dobras
do sepulcro que habitas
lá onde se conta a tua história.
Tu ranges e palpitas
infinita água em sofrimento
luzindo em tua roxa viuvez.
Lembra então Inês
e retém contigo nessa hora
teu eterno amor
sol hibernado
este que ainda vemos
e que já não vês.

[...]

AS MARINHAS (1984)
CANTO III

CAIS DA AGONIA

[p. 221]

Ah, maravilhosa obsessão da nossa idade
cidades
escassas de mar
subdelírios de sanguíneos poentes
a desabar sobre lentas águas duras
poentes onde passam ciclistas e motores
movidos por um certo número de cavalos.
Daqui da margem da consciência
ninguém se move
temendo que o planeta arda
em novo apocalipse.
um sol negro como um saco de silício
fende o oceano e bate na plataforma
onde alguns petroleiros
─ perfiladas colunas romanas ─
imóveis esperam.

[...]

[p. 222]

O céu se retira
como um livro se enrola.
um arcanjo sela as bocas
e os poetas e os santos
amargam os cravos fortes da montanha
cosendo no vazio seus vocábulos
não pousados sobre a carne frágil
dos nossos ombros. Gaivotas sem mar.


[...]

[p. 229]

AS MARINHAS (1984)
CANTO III
LINHA DE FLUTUAÇÃO

E recuso o assalto das aparições
que circundam a minha ilha
onde nem tudo é épico
fraternal ou santo
mas matura lentamente
no afresco conciso do seu tempo.

Desloco-me em mim mesma
aos pulos
com medo do escuro
da queda do tombo
a segundos da morte
trapezista de meus ossos
anjo inelutável
entre os andaimes
que me separam de mim própria.

[...]

Há uma tristeza arcaica
pairando por aqui
algo espesso e frágil
como o pássaro
que estava escondido
sobre as telhas da casa
e que agora partiu.
Não obstante ouço-o cantar adiante.

[p. 236]

AS MARINHAS (1984)
CANTO IV
PAÍS DE CIRCE ─ ILHAS IDÍLICAS –
MAR ABERTO

[...]

[p. 241-243]

ILHAS IDÍLICAS

Meu amor te põe em uso
fazendo-te mover
por entre coisas rasteiras
luas
rasgar de sedas
fendas.

Meu amor labirinto de palavras raras
que te é dado conhecer agora
te funda
no poema
e
no mistério dourado de ti mesma.

E
estando
me
faltas.

Tua presença irreal
agora presença
é figo maduro
que colho
entre o contorno rouco dos teus seios
e a cabeleira que ondula
quase mel quase perfume
roçando a pele dura.

Estou deitada nos sonhos
no sonho nos teus braços
e
estremeço.


No oceano dos sentidos
em cumplicidade
reinamos
tendo o amor
como narcótico
e
à mão algumas alquimias.

Inventamos substâncias
as mais impalpáveis
um olhar, por exemplo,
odores sumos rumores
mas quando em transe
viajamos no vazio
como dois monges

Sem esforço te retenho
e
permaneces
quase sem querer.

Guardo-te em mim
como o mar
guarda a água e o sal
em silêncio profundo.


Toca minha pele assim:
as costas com beijos lentos
a nuca com lábios roxos
as coxas com mãos noturnas.
Nada é mais suave
que teu cabelo solto
aberto como asa
sobre meu corpo.

[...]

[p. 245]

Em voos alternados
para além da superfície
alcançamos o breve instante
feito de âmbar ouro brilhante.
E este gosto.
Ama-me com um amor sem medo
ainda que eu ameace a tua paixão.

[...]

[p. 251]

Amo-te
descendo sobre mim
os grandes olhos oceânicos
a pele de maresias
teu riso castanho.

E o fundo sombrio
do meu corpo
ama teus dedos loucos.

[...]

[p. 252]

Não quero que adivinhes
a mim ou ao poema.
Há por dentro
imagens aturdidas
mais algum encantamento
em permanente efervescência
que te flagelaria.
O que te posso dar
senão a minha geografia?
Quero que possuas
apenas a lembrança desses rumos
e neles te contentes.
Deixa o mais para a poesia
este anjo inédito
que me atravessa.



[...]

[p. 254-255]

Para Maria Rita Kehl

Falo do amor
e enquanto falo
sou minha fantasia
sendo.
O ser posto à minha frente
(dentro do seu silêncio dourado)
me olha.

Lá fora
cachorros latem
porque  a noite começa.
A gorda senhora
da casa ao lado
vestiu o penhoar de náilon
ligou a TV
e espera não sei o que acontecer
como espero não sei o que acontecer.
Talvez haja garças
na beira do lago imóvel
animais dormindo
e crianças chutando latas
num ponto qualquer da cidade.

Estou debaixo do olhar
de um ser
que neste momento
é meu ponto de ligação
com o universo.
A vida está aqui dentro
e lá fora em porções iguais.

Que leis regem esta relação
de sonhos acordados?

O ser
(dentro do silêncio dourado)
examina meus espaços
outrora ocupados pelo mar
e onde agora
crescem pomares.
Certamente sabe
que o amor
(este objeto cintilante)
está aqui
latejando sem sensações
próximas ou não da realidade
e na extrema solidão
do desejar sozinho.
Neste começo de noite
em que cachorros latem lá fora
e a vida se instala
na moldura de uma tela Hopper
o enigma permanece.

E não me decifras.
E não te devoro.


AS MARINHAS (1984)
CANTO IV
PAÍS DE CIRCE ─ ILHAS IDÍLICAS –
MAR ABERTO

MAR ABERTO
[p. 256-259]


Roteiros singrados.
E no poema
o mapa
feixe de terra e água abraçadas.

Ando com a alma cheia de ventos
a navegar em alta solidão.

Estou tomando
o caminho de volta
entre angustiado e surpreendido encanto
entre as aves do céu
e a música deste mar profundo.
Nenhum deus a me fazer companhia
ou qualquer humano.
Estou só como Heitor
diante da morte
a lhe rondar o escudo reluzente.
Suspensa em meu pavor
de carne e ossos.
E espanto.
E de quando em quando
um medo prévio
travando o passo.

Um só oceano
desde os deuses
e mares vários.
Na placenta do mar
hibernam os povos.
Chegando a hora
circunavegam
secretos e brilhantes.



Há qualquer coisa de árvore
no oceano.
Raízes e ramos.

Caminho aquoso
onde marcha o tempo
e o céu singra
cúmplice
o mesmo segredo.

Verde
saída do mar
a manhã pende
nesta marinha.

Provável momento
este de amar ao sol
rodeada de mar.

Ondas azulam
o grande corpo
que respira.

Entre elas
ainda
Ulisses marinha.

Quem tece meu retorno
por este mar
de lodo e seda?
Quem me escora
o medo?
Marc cor de vinho
Como e quando voltar?

Enquanto os remos avançam
o mercúrio se organiza
e é o poema.

Com a tarde nos braços
te navego
alta água antiquíssima.

Nunca soubemos bem
cretenses
fenícios
egípcios
assírios
persas
gregos
vikings
portugueses e seus filhos
que coisa é o mar.