"Antologia" nasce do desejo de reler, de reconhecer, de reunir textos expressivamente conhecidos de autores e autoras frequentemente citados, homenageados e de outros e outras aos quais os lapsos, ora relacionados aos textos, ora aos autores e autoras, por parte dos críticos, estudantes, pesquisadores e leitores inexplicavelmente possam atingir. É um desejo de homenagem, de memória e de reverência. Apenas isso. "Silêncio. Cante-se o fado." - Prof. Dr. Erivelto Reis (editor do blog)
ARCHANJO, NEIDE. Todas as horas e antes: poesia reunida. São
Paulo: A girafa, 2004.
ANTOLOGIA 1 –
NEIDE ARCHANJO
A NÓS [p. 18]
Para que não esqueçam
os nomes daquelas
que foram ofendidas
em sua condição primeva,
este poema.
Suas conquistas hão de ficar
para que as gerações celebrem
os feitos valorosos
em águas e terras,
obras e vozes e amores
filhos
amores refletidos.
Povoem este poema
fêmeas punidas
pelo que tiveram de melhor:
seus assombros
suas epifanias
O tempo em degredo falará
dos roteiros esquecidos
de cada mulher
abismo de se saber sozinha
e, todavia, ressoar.
Epifanias (1999). Primeiro livro que atribui um título a cada poema, Neide Archanjo, segundo Antonio Carlos Secchin, “retorna à terra – e também às raízes, às flores e aos frutos nesta bem plantada coletânea, epifânica aventura rumo ao poético”.Pequeno oratório do poeta para o anjo (1977). Caracterizado pela melodia e harmonia dos versos, é um livro de poemas curtos e encadeados, que consagram o amor para além da dor da perda.Tudo é sempre agora (1994). A morte, a vida, o amor e a permanência da poesia; os sentimentos que moldaram a experiência da poeta frente à morte de seu único irmão.As marinhas (1984). Poema épico composto por quatro anos, parte no Brasil, parte em Portugal. Os seus cinco grandes cantos celebram o mar como território de encontro de duas línguas, duas culturas, dois povos em busca de um sentido comum para suas paixões.
Fonte: https://indicalivros.com/pdf/todas-as-horas-e-antes-volume-1-neide-archanjo#!
ODE À CASUARINA, 20 [p. 26]
Passo a passo
decompõe-se a casa
Casuarina.
Lembranças
e um silêncio
que jamais sentirei
- talvez só na morte –
traçam um mordaça
do cristo Redentor na sala
à jaboticabeira
na janela deste quarto
que nunca terei.
Cães latem longínquos
gatos
pastoreiam despojos
e o jardim
sonha
sob a luz da
lua
que em breve
deixarei.
Mortos
retratos móveis
cartas
livros quadros
amores
paredes tetos.
Movo o corpo
e a cabeça
que o
coração entontece
rumo a outro
tempo
que este não
esquecerei.
Adeus, casa
Casuarina.
Devo-te
tanto.
NEIDE ARCHANJO - Poeta, advogada, psicóloga. Paulista, radicada no Rio de Janeiro. Estreou na poesia em 1964, com o livro "Primeiros Ofícios da Memória". Desde então, criou e participou de movimentos como "Poesia na Praça", varais de poesia, espetáculos em teatro, cafés, faculdades, bibliotecas, festivais nacionais e internacionais de poesia e arte. Criou e implantou a Oficina Literária da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo. Foi bolsista da Fundação Calouste Gulbenkian na qualidade de poeta residente, em Portugal. Seus poemas figuram em antologias nacionais e estrangeiras. É considerada pela crítica uma das autoras brasileiras mais significativas da geração que surgiu na década de 60. Foi assessora da Biblioteca Nacional e membro do Conselho Editorial da Revista "Poesia Sempre". Nos anos de 1980 e 2000 recebeu da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) os prêmios de poesia. Foi indicada para o prêmio Jabuti de poesia em 1995, pelo livro "Tudo é Sempre Agora". Os poemas de seu livro "Pequeno Oratório do Poeta Para o Anjo" foram gravados por Maria Bethânia. Possui onze livros publicados, sendo que "Soraya � uma princesa Sefardita" é edição bilíngue, francesa. Em 2005, ganhou o Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras. Em 2006, pela publicação de sua Obra Completa, comemorando 40 anos de poesia, obteve, pela segunda vez consecutiva, o prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras, o Jabuti de Poesia e o Prêmio da Associação Brasileira dos Escritores.
Fonte: http://www.blocosonline.com.br/literatura/poesia/obrasdigitais/saciedigpv/02/narchanjo06.php
RESSENTIMENTO [p. 53-54]
Nas rosas da
ausência
celebro-te.
Não mais me
arrebatas
nem mais me
iluminas
Devagar é a
perda
que respira.
E bisonho é
este poema
que ainda
canta
o que já não
podes ser.
Em SP com Neide Archanjo, Lygia Fagundes Telles e a agente literária alemã, Ray-Gude Mertin |
Fonte: http://www.bettymilan.com.br/neide-archanjo-lygia-fagundes-telles-e-a-ray-gude-mertin/
CONTABILIZANDO [p. 54-55]
Devolve
o primeiro
volume do Quixote
perdido no
trem.
Cervantes
não te pertencia.
E também a
Odisséia
já que à
Ilíada
eu sabia que
nunca
chegarias
Devolve
Os
pirilampos da noite do Sena
tuas imagens
nos espelhos de Versailles
e o beijo
que roubaste do Rodin.
Devolve
o que era
meu
e sonhei que
pudesse ser teu.
Ah, não
podia!
Sabias de
poetas
e não de Poesia
estranha
carne
vísceras
lágrimas dramas
alma
ensanguentada
a manchar
tua alegria.
Ah, da
Poesia não sabias!
Conserva
conserva
o verde
olhar
os cheiros
de paixão
os cachos de
cabelo
que mãe Oxum
no Abaeté
vela.
E aqueles
teus medos de criança.
Devolve o
amor
que este não
resta
como o
pássaro que alojamos
no rosto da
janela.
Das páginas do maravilhoso JORNAL DE POESIA
http://www.jornaldepoesia.jor.br/poesia.html
Algumas opiniões:
"N.A., sofri o seu Quitote tango e foxtrote, Sofri mesmo — em grande parte pelas ambigüidades admiravelmente construídas nele,eis que nelenada quero ver que não tenha sido dominado por sua arte. Ora o lia como expressão de um ser feminino, ora de um masculino, ora de um siriano, ora de um a-hetero-homo-pan-sexual, ora de alguém mininesco,ora de alguém nauseado, ora como esperança,ora como desespero,ora como de iluso,ora de iludido. O que sei é que a sua busca é pungente, porque magoada e doída e magoante e dolente, graças à poderosa expressão que ilumina como se tornada fachos, armas, esporas, alimentos, venenos. Sua procura teve sobre mim o rigor atritante de coisa pensante congrata, inarredável."
Antônio Houaiss
" Aqui estou debruçado sobre seu livro Escavações curtindo aquela "admirável epifania/onde o poema se debruça/inominável". Quer nos poemas de largo fôlego, de ‘Sítios,quer na extrema concisão de ‘Fragmentos’, você alcança a justa e vibrante expressão que deixa marca no leitor."
Carlos Drummond de Andrade
"As admiráveis Marinhas de N.A. são uma meditação sobre o Destino, o da autora enquanto pessoa e enquanto brasileira, o da pátria enquanto mito emocional e realidade histórica; e é também uma meditação sobre a poesia enquanto veículo de expressão para o que por outros meios não poderia ser expresso.Tudo se condensa no mesmo mito, o mito do poeta no mundo, mas mundo e poeta sob as suas espécies reais de uma língua literária e de uma integração nacional. A autora domina o instrumento em todas as suas virtualidades técnicas e dá a cada ‘quadro’ a tonalidade própria a estrutura versificatória que exige,as harmônicas que lhe são próprias. As marinhas surpreendem o núcleo substanciado que é ser brasileiro e sabe identificá-lo no ‘correlativo poético’ que lhe corresponde. Tendo estreado em 1964 com Primeiros ofícios da memória, ela evidenciava desde então as mudanças de plano que àquela altura começavam a ser manifestar na poesia brasileira contemporânea. É a ‘poesia cívica’ em sua manifestação mais perfeita, não pode ser ‘cívica’ mas pode ser poesia, Podemos identificar em N.A., sem hesitação, uma das grandes vozes poéticas do nosso tempo, o ‘o contraste’ mineralógico pelo qual se deve verificar o teor de poesia de todos os demais. "
Wilson Martins
Fonte: http://www.jornaldepoesia.jor.br/na.html#opinioes
A VOLTA DO LOBO [p. 67-68]
Lobo lobo
Canis Lupus
Signatus
se a solidão
fez-se contigo
como
assassinar-te?
Longos são
os uivos
longas são
as noites
ameaças do
tempo
que te ameaça
agora
entre
trilhas e penhascos
píncaros povoados
por teu mito
sombras
e infâncias
e estórias
a espreitar
o ser
que medroso
se apavora
porque ainda
és perigo
para quem
não soube
fazer-te
memória.
Permanecerás,
irmão,
eu te
asseguro,
pescoço em
riste
contemplando
o céu
desejando
asas
eterno
caçados de luas.
Do livro:
Epifanias (1999)
A poeta paulista Neide Archanjo, autora de dez livros, lança este ano, Todas as Horas e Antes, livro que reúne toda a sua poesia, em comemoração aos 40 anos de oficio literário. A editora A Girafa, conhecida pelo tratamento gráfico que propicia às suas edições, é a responsável pela publicação do livro, que vai ser lançado em várias capitais, dentre elas Salvador. Nesta entrevista, Neide Archanjo, considerada pela crítica como uma das autoras mais significativas da década de 1960, fala de seu pioneirismo no movimento Poesia na Praça, da recente edição francesa de seu Pequeno Oratório do Poeta para o Anjo, da sua caminhada poética que afirma – “é grande e quase obscura” – e complementa que o desconhecimento, a apatia diante da literatura, não é privilégio do Brasil.
José Inácio Vieira de Melo – A sua obra tem obtido da crítica uma grande atenção. Os pareceres sobre a variedade temática são unânimes, dando destaque para o tom lírico da sua poesia. Como se dá o seu processo de criação?
Neide Archanjo – Desde os Primeiros Ofícios da Memória, publicado em 1964, a crítica se deteve sobre meu trabalho. Eu era tão jovem – 24 anos – mas surgia com uma proposta que provocou uma certa comoção. O poeta Paulo Bonfim, o crítico Domingos Carvalho da Silva e a grande poeta, recém-falecida, Hilda Hilst, celebraram minha estréia. Aliás, com a perda de Hilda, completei um ciclo doloroso de perdas daqueles que foram os pilares da minha iniciação poética. Neli Dutra, Mira Schendel, Vilém Flusser e José Luiz Archanjo.
José Inácio Vieira de Melo – A sua obra tem obtido da crítica uma grande atenção. Os pareceres sobre a variedade temática são unânimes, dando destaque para o tom lírico da sua poesia. Como se dá o seu processo de criação?
Neide Archanjo – Desde os Primeiros Ofícios da Memória, publicado em 1964, a crítica se deteve sobre meu trabalho. Eu era tão jovem – 24 anos – mas surgia com uma proposta que provocou uma certa comoção. O poeta Paulo Bonfim, o crítico Domingos Carvalho da Silva e a grande poeta, recém-falecida, Hilda Hilst, celebraram minha estréia. Aliás, com a perda de Hilda, completei um ciclo doloroso de perdas daqueles que foram os pilares da minha iniciação poética. Neli Dutra, Mira Schendel, Vilém Flusser e José Luiz Archanjo.
Ao longo desses anos venho buscando alcançar uma variedade não só temática mas também formal, indo do poema longo (O Poeta Itinerante, As Marinhas e o Pequeno oratório do Poeta para o Anjo) aos poemas esparsos, todavia ligados por um tema em comum (Escavações, Tudo é sempre agora, Epifanias e Todas as Horas). Quanto ao lirismo da minha poesia, creio que é uma conseqüência, o resultado de uma certa maneira de ser, sentir, pensar e agir.
JIVM – O que a faz buscar a variação, tanto no tema quanto na forma?
NA – Não é uma opção racional. A poesia não pode ser submetida a esse tipo de escolha. O que acontece é que se recebe uma notícia poética, uma anunciação que poderá ser transformada ou não numa epifania, isto é, em uma iluminação, em um bom poema.
JIVM – O que a faz buscar a variação, tanto no tema quanto na forma?
NA – Não é uma opção racional. A poesia não pode ser submetida a esse tipo de escolha. O que acontece é que se recebe uma notícia poética, uma anunciação que poderá ser transformada ou não numa epifania, isto é, em uma iluminação, em um bom poema.
Isso sim depende do poeta e da sua preparação interior, intelectual, espiritual. É preciso bater, bater a palavra na forja da língua e esperar que ela se revele em todo seu esplendor original, para assim poder-se dizer o indizível.
Diria que os poemas-arautos, aqueles que noticiam que um novo trabalho está surgindo, são placas matrizes, bússolas condutoras do tema e da forma. São nebulosos esses estados, às vezes surpreendentes como revelações do inconsciente individual e coletivo. Cabe ao poeta decifrá-los ou ser devorado por eles.
JIVM – A editora A Girafa acena com o lançamento da sua obra reunida em comemoração aos quarenta anos de estréia. Qual o sentido dessa longa caminhada poética?
NA – Tive a alegria de reencontrar Pedro Paulo Sena Madureira. Ele é editor de minha poesia desde 1980, quando publicou Escavações pela Nova Fronteira. Apenas o lendário editor Massao Ohno, que publicou meus Primeiros Ofícios da Memória, em 1964, pode estar ao seu lado como editor, no sentido pleno de ler, repassar o texto com o autor, apontar deficiências, sugerir, contar, fazer o livro acontecer. Estive em outras grandes editoras, mas editores só Massao Ohno e Pedro Paulo. Daí Pedro Paulo, agora editor de A Girafa em São Paulo, me convidar para publicar minha poesia reunida – 10 livros em um só volume, de mais de setecentas páginas, o que é uma ousadia. A alegria é de saber que ele, eu e a minha poesia resistimos a todos esses anos. Todas as Horas e Antes reunirá minha poesia anterior e o novo livro. Será uma bela edição com tratamento gráfico de Lucila Sartori que cuidará das capas e será lançado em diversas capitais, prioritariamente em São Paulo, Rio e Salvador. Escolhi setembro, mês de meu aniversário e de paz primaveril, para o lançamento em Salvador. Detalhes a gente conta depois.
JIVM – A editora A Girafa acena com o lançamento da sua obra reunida em comemoração aos quarenta anos de estréia. Qual o sentido dessa longa caminhada poética?
NA – Tive a alegria de reencontrar Pedro Paulo Sena Madureira. Ele é editor de minha poesia desde 1980, quando publicou Escavações pela Nova Fronteira. Apenas o lendário editor Massao Ohno, que publicou meus Primeiros Ofícios da Memória, em 1964, pode estar ao seu lado como editor, no sentido pleno de ler, repassar o texto com o autor, apontar deficiências, sugerir, contar, fazer o livro acontecer. Estive em outras grandes editoras, mas editores só Massao Ohno e Pedro Paulo. Daí Pedro Paulo, agora editor de A Girafa em São Paulo, me convidar para publicar minha poesia reunida – 10 livros em um só volume, de mais de setecentas páginas, o que é uma ousadia. A alegria é de saber que ele, eu e a minha poesia resistimos a todos esses anos. Todas as Horas e Antes reunirá minha poesia anterior e o novo livro. Será uma bela edição com tratamento gráfico de Lucila Sartori que cuidará das capas e será lançado em diversas capitais, prioritariamente em São Paulo, Rio e Salvador. Escolhi setembro, mês de meu aniversário e de paz primaveril, para o lançamento em Salvador. Detalhes a gente conta depois.
A caminhada poética é grande e quase obscura. Depois de quase 40 anos de publicações, prêmios, entrevistas na mídia, teses sobre o trabalho, o poeta é sempre um desconhecido. Quando é apresentado, fora de seu círculo, social e mesmo literário, ele tem que repetidamente apresentar sua biografia. Mas eu fui me fazendo, em fazendo a poesia. Note que esse desconhecimento, essa apatia diante da literatura, não é privilégio do Brasil. Li que os britânicos desconhecem as obras literárias do sue país e que as pesquisas provam que as frases de séries de TV, são mais famosas para eles que trechos de Shakespeare ou Oscar Wilde. Se isso está acontecendo na Inglaterra, imagine no Brasil...
JIVM – Em 2003, seu livro Pequeno Oratório do Poeta para o Anjo ganhou tradução para o francês. Qual foi o procedimento para a publicação?
NA – O Pequeno Oratório do Poeta para o Anjo já nasceu privilegiado com a oferta amiga de Maria Bethânia de gravá-lo e fazer uma apresentação, dirigida por Bia Lessa, na Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro para um público de quase mil pessoas. Como Bethânia, até então, não havia dito nenhum poeta, exceto o mestre Fernando Pessoa, foi uma honra incomensurável, uma demonstração de amor, respeito e reverência à minha poesia. Ninguém escolhe Maria Bethânia, apenas é escolhido por ela. O Anjo voou e foi parar em Paris. As Editions Eulina Carvalho, dirigida pela pernambucana Selda Carvalho e a francesa Véronique Basset – excelente tradutora – me convidaram e a publicação saiu em outubro de 2003 com lançamentos em Paris. Agora, já estão em curso outras traduções de livros meus e posso assegurar a competência e o profissionalismo da editora que já publicou textos de Clarice Lispector, Marilene Filinto, Ferreira Gullar.
JIVM – No início de sua carreira literária, década de 1960, você foi uma das fundadoras do movimento Poesia na Praça, em São Paulo, que depois se alastrou por todo o país. O que movia os jovens a irem ás praças recitarem poesia?
NA – O movimento Poesia na Praça foi criado por meu irmão José Luiz Archanjo, Ilka Brunhilde, Renata Pallottini e eu. Consistia em estender varais – poemas escritos em cartolina, expostos com pregadores em toscos fios, ligados entre as árvores da Praça da República em São Paulo aos domingos, na primeira feira hippie do Brasil. Era 1969 – plena ditadura do governo Médici – e esse era um compromisso político-social de resistência e oposição. Não éramos guerrilheiros, nem seqüestradores de embaixadores. No mínimo tínhamos que contestar a ditadura de alguma forma. Originária da Faculdade de Direito da USP, fui a primeira mulher a ocupar a tradicional tribuna do Largo de São Francisco e fundar o jornal feminino A Presença. Minha arma era a poesia. Era preciso usá-la e assim o fiz tenazmente.
JIVM – E, hoje, como você vê os movimentos de poesia pelo país?
NA – Hoje não há movimentos de poesia pelo país. Há poetas esparsos e pequenos grupos dispersos, agora inseridos na internet, nos blogs, sites, onde circula uma poesia ávida por divulgação, às vezes razoável, outras desprezível. O momento é esse e há que reconhecê-lo.
JIVM – Em 2003, seu livro Pequeno Oratório do Poeta para o Anjo ganhou tradução para o francês. Qual foi o procedimento para a publicação?
NA – O Pequeno Oratório do Poeta para o Anjo já nasceu privilegiado com a oferta amiga de Maria Bethânia de gravá-lo e fazer uma apresentação, dirigida por Bia Lessa, na Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro para um público de quase mil pessoas. Como Bethânia, até então, não havia dito nenhum poeta, exceto o mestre Fernando Pessoa, foi uma honra incomensurável, uma demonstração de amor, respeito e reverência à minha poesia. Ninguém escolhe Maria Bethânia, apenas é escolhido por ela. O Anjo voou e foi parar em Paris. As Editions Eulina Carvalho, dirigida pela pernambucana Selda Carvalho e a francesa Véronique Basset – excelente tradutora – me convidaram e a publicação saiu em outubro de 2003 com lançamentos em Paris. Agora, já estão em curso outras traduções de livros meus e posso assegurar a competência e o profissionalismo da editora que já publicou textos de Clarice Lispector, Marilene Filinto, Ferreira Gullar.
JIVM – No início de sua carreira literária, década de 1960, você foi uma das fundadoras do movimento Poesia na Praça, em São Paulo, que depois se alastrou por todo o país. O que movia os jovens a irem ás praças recitarem poesia?
NA – O movimento Poesia na Praça foi criado por meu irmão José Luiz Archanjo, Ilka Brunhilde, Renata Pallottini e eu. Consistia em estender varais – poemas escritos em cartolina, expostos com pregadores em toscos fios, ligados entre as árvores da Praça da República em São Paulo aos domingos, na primeira feira hippie do Brasil. Era 1969 – plena ditadura do governo Médici – e esse era um compromisso político-social de resistência e oposição. Não éramos guerrilheiros, nem seqüestradores de embaixadores. No mínimo tínhamos que contestar a ditadura de alguma forma. Originária da Faculdade de Direito da USP, fui a primeira mulher a ocupar a tradicional tribuna do Largo de São Francisco e fundar o jornal feminino A Presença. Minha arma era a poesia. Era preciso usá-la e assim o fiz tenazmente.
JIVM – E, hoje, como você vê os movimentos de poesia pelo país?
NA – Hoje não há movimentos de poesia pelo país. Há poetas esparsos e pequenos grupos dispersos, agora inseridos na internet, nos blogs, sites, onde circula uma poesia ávida por divulgação, às vezes razoável, outras desprezível. O momento é esse e há que reconhecê-lo.
Mas nada tem tanta importância, porque se estamos caminhando para uma nova Idade Média, como prevêem alguns, nossos textos hão de ficar adormecidos por muitos séculos, até um novo Renascimento acontecer. E haja humildade para aceitar isso!
JIVM – Como se deu a paixão pela poesia do alagoano Jorge de Lima?
NA – Ele me foi apresentado por Neli Dutra, escritora gaúcha, mestra de toda uma geração em São Paulo que ia do costureiro Denner ao jovem Jô Soares. Ensinou a Hilda Hilst mitologia e segredos da alquimia. Aos 23 anos tive o privilégio de ser sua discípula e receber dela a edição completa de Jorge de Lima com suas anotações pessoais. Tornou-se meu missal para sempre!
JIVM – Qual a sua mensagem aos poetas que estão ensaiando os primeiros passos?
NA – Às vezes penso em todos os poetas que estrearam comigo em 1964. O tempo resguardou muito poucos. Para quem está começando agora sugiro disciplina (obstinato rigori), humildade e paciência. Não adianta querer aparecer antes da hora. A poesia é uma arte marcial, tem recuos e avanços exatos. E é sabiamente Zen. Sem mestres, o discípulo se perde, mas ele só encontrará o mestre, quando estiver pronto. Então é bom ir cuidando disso: leituras, ato-conhecimento, viagens, vivências. Tentar ser o seu poema vivo.
JIVM – Como se deu a paixão pela poesia do alagoano Jorge de Lima?
NA – Ele me foi apresentado por Neli Dutra, escritora gaúcha, mestra de toda uma geração em São Paulo que ia do costureiro Denner ao jovem Jô Soares. Ensinou a Hilda Hilst mitologia e segredos da alquimia. Aos 23 anos tive o privilégio de ser sua discípula e receber dela a edição completa de Jorge de Lima com suas anotações pessoais. Tornou-se meu missal para sempre!
JIVM – Qual a sua mensagem aos poetas que estão ensaiando os primeiros passos?
NA – Às vezes penso em todos os poetas que estrearam comigo em 1964. O tempo resguardou muito poucos. Para quem está começando agora sugiro disciplina (obstinato rigori), humildade e paciência. Não adianta querer aparecer antes da hora. A poesia é uma arte marcial, tem recuos e avanços exatos. E é sabiamente Zen. Sem mestres, o discípulo se perde, mas ele só encontrará o mestre, quando estiver pronto. Então é bom ir cuidando disso: leituras, ato-conhecimento, viagens, vivências. Tentar ser o seu poema vivo.
Cartas a um jovem poeta de Rainer Maria Rilke deveria ser o livro de cabeceira de quem pretende escrever poesia seriamente. Um pouco de Fernando Pessoa, Ginsberg, Eliot, Emily Dickson, Borges, Silvia Plat, muito dos clássicos, sobretudo os gregos e, é claro, todos os nossos, dos românticos aos contemporâneos, nem pensar em esquecer Jorge de Lima, Drummond, Bandeira, Vinícius, Cabral, Guimarães Rosa e tantos, tantos outros mais.
José Inácio Vieira de Melo é poeta, autor dos livros Códigos do Silêncio (2000), Decifração de Abismos (2002) e A terceira romaria (no prelo). Organizador de Concerto lírico a quinze vozes – uma coletânea de novos poetas da Bahia (no prelo).
Fonte: http://www.jornaldepoesia.jor.br/jinacio8.html
SONATINA [p. 71-72]
E no entanto
eras meu irmão.
Aos setenta
anos poderíamos ter sido
um senhor e
uma senhora
de braços
dados passeando por Paris.
Ah, ver-te
envelhecer!
Súbito
vences a morte
e estás tão
presente
como no dia
em que nasceste
e te abracei.
Então és
poema
aquilo que
me escapa
e todavia
conservei.
Do livro:
Epifanias (1999)
OFF (p. 76-77)
Dos teus
braços
talvez dos
teus olhos
vem esta
ternura
que minha
alma
alcança.
Mas pouco
sabes de mim.
O amor nunca
sabe
e é melhor
assim.
Do livro:
Epifanias (1999)
NE ME QUITTES PAS [p.79]
Um amor pode
acabar
ir-se embora
pela vida afora
ainda que
poderoso e belo.
Um amor pode
acabar,
acredite,
sem que os
amantes saibam das fraturas,
pois,
parado, ele se move
rumo à
procuras.
Um amor pode
acabar
entre as
pequenas delícias
esquecidas
que são os
dias partidos
entre as
belezas e feridas.
Um amor pode
acabar
mentindo
ao som de
Cole Porter
(quem
diria...)
sonhando no
convés
onde a lua
sorri
arrepiando o
mar.
Um amor pode
acabar,
perdoe,
no avesso do
recomeçar.
Mas é quando
nem vê
o próprio
olhar
é que um
amor pode acabar.
Do livro:
Epifanias (1999)
OS VINTE
ANOS [p. 82-83]
A vida me
amedronta
não à jovem
plena de
graça
que ao sol
se entrega
ou ao
surfista
que impune
desenha
arabescos
na concha
das ondas
buscando a
pérola.
Eles compõem
o dia
cacheados cabelos
expostas alegrias.
Em vão sorvo
a claridade
e tento
despregar-me da areia.
O mar ri
da falsa
sereia.
Do livro:
Epifanias (1999)
As palavras
fenecem
descem à
tumba
rejuvenescem.
Enganam a
ponta do lápis
o escritor
e o teclado
do computador.
As palavras
são déspotas
exigem
escolhas apaixonadas.
Corremos ao
seu encalço.
mas
pronunciadas
ei-las fora
do laço.
Do livro:
Epifanias (1999)
***
Do livro Tudo é sempre agora (1994)
DA MORTE
[p. 134]
Não estamos
perdidos.
Isto é um
milagre. Ter corpo
uma casa um
amigo
manter nas
veias o sangue aceso
é um
milagre. Saber que houve alguém
que nos
acariciou
e nos banhou
de lágrimas.
Só
no meio da
rua
penso nestas
dádivas
antes que a
lâmina da morte me atravesse.
***
Do livro Tudo é sempre agora (1994)
[p. 134]
[p. 134]
Sob a dor
o poema se
protege]e recusa a vergonha da esperança
que a morte
tenta apagar.
Chega com
seu vento úmido
seu gosto de
terra
e sendo
passageiro
ele se faz
inteiro.
***
Do livro Tudo é sempre agora (1994)
[p.135]
A febre da
mão que escreve
a inútil
luta contra o tempo
a sensação
de ser caçada por alguém
ou alguma
coisa
faz-me arder
nervo a nervo
inventar uma
canção
(como os
tártaros
que nas
batalhas cantavam)
para afastar
a lança rutilante
que um dia
eu sei, me
atingirá.
Do livro Tudo é sempre agora (1994)
Do livro Tudo é sempre agora (1994)
O AMOR É CAMISA
[p. 156-157]
O amor é
camisa
que se
carrega sobre o esqueleto
sem saber
que por dentro
está cerzido
o Tempo.
E passa o
Tempo por dentro
das pedras
não decifradas
dos mapas
portugueses
do oceano
que já foi mar
e antes rio
do
assassinato do fundista solitário.
E passa o
Tempo por dentro
de Publio
Virgilio Marão
sonhando
Enéias
de Ragusa no
Adriático
dos
navegantes de Urano e Netuno
de certos
tons de abril
que será
sempre e estranhamente
abril.
E passa o
Tempo por dentro
do bisavô
Affonso Donato
visitado por
um anjo
no dia da
sua morte.
E passa o
Tempo por dentro
da Quinta
Sinfonia de Mahler
das janelas
de Veneza
dos 150
Salmos de Israel
e daquilo
que se amou de verdade.
Passa o
Tempo por dentro
desta página
como passa o
incenso
por dentro
do labirinto
de um
relógio chinês.
***
***
[Trechos selecionados]
Do livro Tudo é sempre agora (1994)
Do amor
Assim o amor
resiste:
um brilho
furtivo
no tear da
alma.
***
Do livro Tudo é sempre agora (1994)
Do amor
[p. 160]
Atrás da
curva dos teus ombros
uma chuva
caía incessante
um pouco
água um pouco bruma.
Mais acima
estavam seus teus olhos
duas tâmaras
maduras.
Então
pensei: que alegria é esta
que a vida
não me deu antes?
As tardes
passarão esta hora passará
outras
esperas outros acontecimentos
hão de
turvar meu sangue.
Não hoje.
***
Do livro Tudo é sempre agora (1994)
Do amor
[p. 161]
Neste
labirinto
estamos sós
sem fio nem
Ariadne
e o amor é
um diamante
movendo suas
arestas
cumprindo
seu destino.
***
Do livro Tudo é sempre agora (1994)
Do amor
[p. 161]
Paisagem é
tudo aquilo
que pode ser
observado:
as árvores
o que não é
humano
o homem
arcaico
e certos
seres que não são para si.
Os amantes
são pura paisagem.
***
Do livro Tudo é sempre agora (1994)
Do amor
[p. 162]
Ah, este
desejo de te ter tão perto
ah, esta
carícia que a mão prolonga
e não
alcança.
Assim como o
rio
o amor
imagina as suas margens.
Eu imagino
as tuas águas.
***
Do livro Tudo é sempre agora (1994)
Do amor
Há em ti um
senso remoto de paixão.
Estás no
leito como um cavalo
está no
campo
entre
paisagens e abismos
sonhando os
próprios movimentos.
Em êxtase
contornas os lençóis
o poema que nos cobre.
Fulgor nos
teus cascos
lírios no
teu sangue.
***
Do livro Tudo é sempre agora (1994)
Do amor
[p. 163]
Inusitada
noite
em que estar
contigo
é como
roubar laranjas
no quintal
da infância.
***
Do livro Tudo é sempre agora (1994)
Do amor
[p. 165]
Acordo
quando falas
e nunca sei
o que quero ouvir.
Sei que
falas e isso basta
porque esta
hora é feliz.
E desejo
outras e mais outras
em que dirás
tudo o que quero ouvir.
Saudades
futuras.
A teu lado
caminho quase muda
e estando
contente
nunca estou
feliz.
***
Do livro Tudo é sempre agora (1994)
Do amor
[p. 166]
Ouso amar o
que sequer
és capas de
sonhar.
Hoje
vendo-te
através da chuva
reconheci meu
reino minha casa
e amei-te
depressa
com medo
deste amor acabar.
Contornos
vermelhos
outonos
que nos
afastará?
Do livro Tudo é sempre agora (1994)
Da poesia
[p. 172-173]
Poesia
grão amargo
entre meus
dentes.
***
Longe muito
longe
nos confins
do universo
e no
andamento dos arquétipos
o poema
campo
contínuo
reluz
sem forma
nem som
apenas
ideia.
***
Do livro Tudo é sempre agora (1994)
Da poesia
[p. 173]
No subsolo
jaz o poema
prisioneiro
sem saída
da palavra
não criada
algoz a
condená-lo
a um leito
de dor e de silêncio.
***
Do livro Tudo é sempre agora (1994)
Da poesia
[p. 173]
No subsolo
jaz o poema
prisioneiro
sem saída
da palavra
não criada
algoz a
condená-lo
a um leito
de dor e de silêncio.
***
Do livro Tudo é sempre agora (1994)
Da poesia
[p. 175]
Conto meus
poemas
como um
avarento conta
suas moedas.
Há um
comércio entre o poeta
e a folha a
ser lavrada.
Porque custa
muito um poema.
Cada palavra
é o rosto de Deus
e o poeta um
vazio ajoelhado.
***
Do livro Tudo é sempre agora (1994)
Da poesia
[p. 177]
Eu e o poema
volúpia e
nenhuma calma
algum luxo
já apaziguado.
Simplesmente
sonhamos
o que a nós
dois
foi dado ser
sonhado.
***
AS MARINHAS (1984)
CANTO I
PREAMAR
[p. 184]
[Trechos selecionados]
O planeta d’água
gira
e com ele
gira o mar.
Abraçados os
dois
(ritmo
amante rotação ondulante)
oscilam e
dessa estreita simetria
nascem
praias e ilhas
concheados
litorais.
Um eixo imaginário
faz a terra
e o mar
girar iguais.
[...]
[p.185]
O mundo
apenas começava
e nada
pressentia o advento destes séculos
onde o homem
está sozinho
sem o Verbo
em meio às
palavras que o consomem.
Os deuses
cantavam a cólera humana
ainda e
sempre funesta
postados na
encruzilhada dos caminhos
no dorso dos
ventos
ou na
soleira das portas.
Um silêncio
emocionante
contínuo
(não este
feito de momentos imprecisos)
atravessava
o tempo.
[...]
[p.186]
A poesia
dorme nos pomares de água
à espera de instrumentos
navios
plumas cavalos
perdida
entre os sentimentos azuis
e coisas amarelas.
O sonho que
a poesia sonha
incha os
poros da terra
e ainda que
a palavra não venha
ou um deus
qualquer tome do barro
faça poemas
e sopre sobre ele o Verbo
o sonho que
a poesia sonha
permanece
intato à espera.
Degolam
animais
que oferecem
em sacrifício
às
divindades punitivas
que lhes
povoam o sono
sentados
entorpecidos
nas negras
extensões
das negras
manhãs.
Antes de
partir celebram
Bóreas
Zéfiro Notos Euros
infusos nas
costas de bronze
invocando
sua mansidão.
Choram pelas
terras a conquistar
cercados de
fantasmas
nuvens
sombrosas
amedrontados.
A praia não
é o mar.
Eles sabem.
[...]
[p. 187]
Quero que
águas
inundem este
poema
como o
sangue inunda o corpo
barco que
navega.
E serão as
águas claras
dos momentos
claros
as águas
escuras
dos momentos
escuros
convulsas
turvas aneladas
frias mornas
paralisantes
calmas
largas salinas
portuárias
águas águas
águas
Sem estação
exata pra nascer
as águas
nascem:
no céu
nuvens
na terra
lírios
no ser
lágrimas suor
saliva esperma
catarro urina
e sangue.
AS MARINHAS (1984)
CANTO II
LITORAIS
[p. 188]
[Trechos selecionados]
[...]
O tempo
avança sobre mim
repetido
plácido exausto.
Alguém está
junto ao mar
vindo da
cidade desnecessária.
Um amor
lúdico se instala
entre a água
salgada
e a presença
que a ela se opõe
abrindo um
caminho brilhante
que posso
ver daqui.
Fende-se
então o mar
com seus
peixes deslizantes
para acolher
a carne
que o
penetra
e fazer-se
azul dentro dela.
Sem
envelhecer
estou
mudando
às vezes
lentamente
outras com
pressa.
Não sou uma
móvel criatura
daquelas que
erram pelo cais
relembrando
coisas desejadas
e repetindo
perguntas
que há muito
o coração
já não
responde.
Mudo como
quem se move
rumo a um
sítio reservado
onde um
outra intensidade
(que ainda
não decifro)
cresce.
[p. 189]
Pois existe
uma palavra
virgem de
sentido
insondável
guardada num
regaço que ignoro.
Um nome que
custa falar
escondido em
pesada armadura
não sei se
veneno
vida
ou a solidão
da palavra silêncio
em
lápis-lazúli
esculpida e
secreta.
[...]
[p. 190]
Palavras
gritam à minha volta
aderindo à
minha pele como sargaços.
Viradas na palma
da mão
são
paisagens esvaídas impressões
sentimento amalgamado
lírica metamorfose.
Revestem-se
de geometrias espinhos
ou simples
tons irrisórios
a protegerem-se
porque sendo
água por fora
as palavras
são mares por dentro.
E circunavego
a grande lembrança
que sei
fundada
no oceano.
Em terra
espreito
sua aurora
seu crepúsculo
oráculos que
me esperam
no
horizonte.
AS MARINHAS
CANTO III
OCEÂNICO –
CAIS DA AGONIA –
LINHA DE
FLUTUAÇÃO
[p. 196-197]
OCEÂNICO
Há uma
biografia pessoal e coletiva
em algum
lugar perdida na memória
procuro aí
procuro no
meu sangue
o mapa e o
compasso
do sonho
peregrino que dará os nomes
das coisas e
dos homens.
Assim não
mais serei o mareante
condenado a
viajar nas velas do poema
terei acesso
ao leme onde a vida
estuante e
convertida me navega.
A mesma vida
agora escafandrista
que emerge
com feitos valorosos
e musas de
esmeralda em mares recolhidas
luminosos e
turvos mares de poesia penetrados
entrevistos
em páginas selvagens cavidades espantosas
terraços a
dar para o suicídio
material
inconsciente a resgatar
ressuscitado
entre mortos
e remorsos e
tempo perdido e recherches
lidas e
vividas em noites delirantes
olhos sempre
postos em estrelas
ou nos
instrumentos de escrever
adormecidos
à minha frente
tão
domésticos e sagrados, ignotas armas,
com as quais
Camões em outros tempos
mais do que
permitia a força humana
espalhou por
toda parte os feitos lusitanos
Era uma vez
um povo
que olhava
para o mar.
[...]
[p. 201]
Era uma vez
um rei
menino.
Tinha barcos
tinha mares
tinha ouros
e ametistas
a luz do dia
a luz da
noite
um reino a
perder de vista.
Tinha um
corpo de talhe fino
os olhos de
puro espanto
e uns sonhos
de maldição
cardos de
maresia
roendo-lhe o
coração.
Ai, ouvidos
que não ouviram
ai, alma que
não decifrou
os reinos de
cristal
que o mar
alevantou.
Era um rei
predestinado
a dar
sementes a dar frutos
último
amparo de um povo
vigiado por
Castela.
D.
Sebastião, D. Sebastião
não magoeis
quem tanto
de vós espera
essa gente
pequena e pobre
que habita a
ponta do mundo
entre azuis
de mar e de nuvens
terra
distante terra distante
agasalhada
de camélias.
[...]
[p. 210]
Aqui diante
destes muros
diante desta
página
levanto
agora
pedra a
pedra
e te revelo
pérola
sombria.
Então, recomeço
a biografia
e roubo-te,
levo-te comigo
não para o regresso
rei ou tribo
antes para o
mar
aquele que
nem viste
tu
magnífica
inquietude
tu
o amor
em navegação
perpétua
e solitude.
[...]
[p. 214]
E os mortos?
Onde estão
os mortos?
Funda
ausência
encostada às
muralhas
lesma
comendo as horas
ovelha que
pastor algum
mais pastoreia.
Uma morte
escolho entre as demais
para
celebrar
a que inda
repousa
aquecendo e
perturbando
as naves do
mosteiro
com um sopro
de amor
tão
insistente profano e desgraçado
paixão
atroz,
a da Castro,
em saudade
coroada
por El-Rei
D. Pedro.
E houve
círios acesos de Coimbra a Alcobaça
tranladação
lendária cumprindo o fado
[triste.
E estás,
linda Inês,
posta em
sossego
quando uma
sobra de dor
vem
acordar-te
e desce
contigo até as dobras
do sepulcro
que habitas
lá onde se
conta a tua história.
Tu ranges e
palpitas
infinita
água em sofrimento
luzindo em
tua roxa viuvez.
Lembra então
Inês
e retém
contigo nessa hora
teu eterno
amor
sol
hibernado
este que
ainda vemos
e que já não
vês.
[...]
AS MARINHAS (1984)
CANTO III
CAIS DA
AGONIA
[p. 221]
Ah,
maravilhosa obsessão da nossa idade
cidades
escassas de
mar
subdelírios
de sanguíneos poentes
a desabar
sobre lentas águas duras
poentes onde
passam ciclistas e motores
movidos por
um certo número de cavalos.
Daqui da
margem da consciência
ninguém se
move
temendo que
o planeta arda
em novo
apocalipse.
um sol negro
como um saco de silício
fende o
oceano e bate na plataforma
onde alguns
petroleiros
─ perfiladas
colunas romanas ─
imóveis
esperam.
[...]
[p. 222]
O céu se
retira
como um
livro se enrola.
um arcanjo
sela as bocas
e os poetas
e os santos
amargam os cravos
fortes da montanha
cosendo no
vazio seus vocábulos
não pousados
sobre a carne frágil
dos nossos
ombros. Gaivotas sem mar.
[...]
[p. 229]
AS MARINHAS (1984)
CANTO III
LINHA DE
FLUTUAÇÃO
E recuso o
assalto das aparições
que
circundam a minha ilha
onde nem
tudo é épico
fraternal ou
santo
mas matura
lentamente
no afresco
conciso do seu tempo.
Desloco-me
em mim mesma
aos pulos
com medo do
escuro
da queda do
tombo
a segundos
da morte
trapezista
de meus ossos
anjo
inelutável
entre os
andaimes
que me
separam de mim própria.
[...]
Há uma
tristeza arcaica
pairando por
aqui
algo espesso
e frágil
como o
pássaro
que estava
escondido
sobre as
telhas da casa
e que agora
partiu.
Não obstante
ouço-o cantar adiante.
[p. 236]
AS MARINHAS (1984)
CANTO IV
PAÍS DE
CIRCE ─ ILHAS IDÍLICAS –
MAR ABERTO
[...]
[p. 241-243]
ILHAS
IDÍLICAS
Meu amor te
põe em uso
fazendo-te
mover
por entre
coisas rasteiras
luas
rasgar de
sedas
fendas.
Meu amor
labirinto de palavras raras
que te é
dado conhecer agora
te funda
no poema
e
no mistério
dourado de ti mesma.
E
estando
me
faltas.
Tua presença
irreal
agora
presença
é figo
maduro
que colho
entre o contorno
rouco dos teus seios
e a
cabeleira que ondula
quase mel
quase perfume
roçando a
pele dura.
Estou
deitada nos sonhos
no sonho nos
teus braços
e
estremeço.
No oceano
dos sentidos
em cumplicidade
reinamos
tendo o amor
como
narcótico
e
à mão
algumas alquimias.
Inventamos substâncias
as mais
impalpáveis
um olhar,
por exemplo,
odores sumos
rumores
mas quando
em transe
viajamos no
vazio
como dois
monges
Sem esforço
te retenho
e
permaneces
quase sem
querer.
Guardo-te em
mim
como o mar
guarda a
água e o sal
em silêncio
profundo.
Toca minha
pele assim:
as costas
com beijos lentos
a nuca com
lábios roxos
as coxas com
mãos noturnas.
Nada é mais
suave
que teu
cabelo solto
aberto como
asa
sobre meu
corpo.
[...]
[p. 245]
Em voos
alternados
para além da
superfície
alcançamos o
breve instante
feito de
âmbar ouro brilhante.
E este
gosto.
Ama-me com
um amor sem medo
ainda que eu
ameace a tua paixão.
[...]
[p. 251]
Amo-te
descendo
sobre mim
os grandes
olhos oceânicos
a pele de
maresias
teu riso
castanho.
E o fundo sombrio
do meu corpo
ama teus
dedos loucos.
[...]
[p. 252]
Não quero
que adivinhes
a mim ou ao
poema.
Há por
dentro
imagens
aturdidas
mais algum
encantamento
em
permanente efervescência
que te
flagelaria.
O que te
posso dar
senão a
minha geografia?
Quero que
possuas
apenas a
lembrança desses rumos
e neles te
contentes.
Deixa o mais
para a poesia
este anjo
inédito
que me
atravessa.
[...]
[p. 254-255]
Para Maria
Rita Kehl
Falo do amor
e enquanto
falo
sou minha
fantasia
sendo.
O ser posto
à minha frente
(dentro do
seu silêncio dourado)
me olha.
Lá fora
cachorros
latem
porque a noite começa.
A gorda
senhora
da casa ao
lado
vestiu o
penhoar de náilon
ligou a TV
e espera não
sei o que acontecer
como espero não
sei o que acontecer.
Talvez haja
garças
na beira do
lago imóvel
animais
dormindo
e crianças chutando
latas
num ponto
qualquer da cidade.
Estou
debaixo do olhar
de um ser
que neste
momento
é meu ponto
de ligação
com o
universo.
A vida está
aqui dentro
e lá fora em
porções iguais.
Que leis
regem esta relação
de sonhos
acordados?
O ser
(dentro do
silêncio dourado)
examina meus
espaços
outrora
ocupados pelo mar
e onde agora
crescem
pomares.
Certamente
sabe
que o amor
(este objeto
cintilante)
está aqui
latejando
sem sensações
próximas ou
não da realidade
e na extrema
solidão
do desejar
sozinho.
Neste começo
de noite
em que
cachorros latem lá fora
e a vida se
instala
na moldura
de uma tela Hopper
o enigma
permanece.
E não me
decifras.
E não te
devoro.
AS MARINHAS (1984)
CANTO IV
PAÍS DE
CIRCE ─ ILHAS IDÍLICAS –
MAR ABERTO
MAR ABERTO
[p. 256-259]
Roteiros
singrados.
E no poema
o mapa
feixe de
terra e água abraçadas.
Ando com a
alma cheia de ventos
a navegar em
alta solidão.
Estou
tomando
o caminho de
volta
entre
angustiado e surpreendido encanto
entre as
aves do céu
e a música
deste mar profundo.
Nenhum deus
a me fazer companhia
ou qualquer
humano.
Estou só
como Heitor
diante da
morte
a lhe rondar
o escudo reluzente.
Suspensa em
meu pavor
de carne e
ossos.
E espanto.
E de quando
em quando
um medo
prévio
travando o
passo.
Um só oceano
desde os
deuses
e mares
vários.
Na placenta
do mar
hibernam os
povos.
Chegando a
hora
circunavegam
secretos e
brilhantes.
Há qualquer
coisa de árvore
no oceano.
Raízes e
ramos.
Caminho
aquoso
onde marcha
o tempo
e o céu
singra
cúmplice
o mesmo
segredo.
Verde
saída do mar
a manhã
pende
nesta
marinha.
Provável momento
este de amar
ao sol
rodeada de
mar.
Ondas azulam
o grande
corpo
que respira.
Entre elas
ainda
Ulisses
marinha.
Quem tece
meu retorno
por este mar
de lodo e
seda?
Quem me
escora
o medo?
Marc cor de
vinho
Como e
quando voltar?
Enquanto os
remos avançam
o mercúrio se
organiza
e é o poema.
Com a tarde
nos braços
te navego
alta água
antiquíssima.
Nunca
soubemos bem
cretenses
fenícios
egípcios
assírios
persas
gregos
vikings
portugueses
e seus filhos
que coisa é
o mar.
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