FAIXA 5 - VOLUME 2
Ser Poeta - Florbela Espanca
Poesia Portuguesa MusIcAda - Produzido por Erivelto Reis
Projeto Euterpe, Erato & Erivelto Reis - Poesia Portuguesa MusIcAda (2025)
Idealização e Produção: Erivelto Reis
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O soneto "Ser poeta" é um verdadeiro manifesto da visão de Florbela sobre a arte de criar, um autorretrato do poeta e, por extensão, da própria autora. Desde o primeiro verso, "Ser poeta é ser mais alto, é ser maior / Do que os homens!", a poeta estabelece a elevada condição do ser poético. Não se trata de uma superioridade arrogante, mas de uma capacidade de transcender a realidade ordinária, de enxergar e sentir para além do comum. Essa elevação confere ao poeta uma perspectiva singular, um olhar que capta nuances imperceptíveis aos demais.
A contradição é um elemento central no poema, refletindo a complexidade da alma poética. "Morder como quem beija!" expressa a dualidade entre a ferocidade da paixão e a ternura do afeto, a capacidade do poeta de amar intensamente, mesmo que isso implique dor ou angústia. Essa ambivalência se repete em "É ser mendigo e dar como quem seja / Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!". O poeta é, ao mesmo tempo, aquele que se sente desamparado, carente de tudo, e o que possui uma riqueza interior tão vasta que pode ofertá-la generosamente, dominando tanto as alegrias ("Aquém") quanto as tristezas ("Além Dor"). Essa ideia de ser mendigo e rei simultaneamente sublinha a extrema sensibilidade do poeta, que experimenta a vida em suas maiores e menores manifestações.
A busca por algo inatingível e a própria ignorância sobre o que se busca são temas recorrentes na obra de Florbela, e aqui se manifestam em "É ter de mil desejos o esplendor / E não saber sequer que se deseja!". Essa frase revela uma inquietude constante, uma sede insaciável por algo indefinido, mas que emana um brilho intenso. O poeta vive em um estado de perpétua aspiração, movido por uma força interna que ele mesmo não consegue nomear ou delimitar.
A imagem do "astro que flameja" dentro do poeta evoca a paixão ardente e a inspiração incessante. Essa chama interna é a fonte de sua criatividade, uma energia vital que o impulsiona a expressar-se. A comparação com "garras e asas de condor" reforça a ideia de um ser dotado de poder e liberdade, capaz de ascender aos céus da imaginação e, ao mesmo tempo, de agarrar-se firmemente à realidade, transformando-a em poesia. O condor, majestoso e solitário, simboliza a natureza muitas vezes isolada e grandiosa do poeta.
O terceiro quarteto aprofunda a ideia da ânsia por algo grandioso e transcendental: "É ter fome, é ter sede de Infinito!". Essa busca incessante pelo ilimitado, pelo que está além da compreensão humana, é uma característica marcante da lírica de Florbela. O poeta não se contenta com o finito, com o terreno; sua alma anseia por algo maior, que preencha seu vazio existencial. "Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim…" é uma imagem poética de grande beleza, onde o "elmo" (capacete de proteção) do poeta é feito de elementos luminosos e delicados, sugerindo que sua defesa e sua coroa são a própria beleza e a efemeridade das manhãs, com seu brilho e sua suavidade. É uma armadura de sonho e sensibilidade.
O verso "É condensar o mundo num só grito!" é de uma força e concisão impressionantes. Ele expressa a capacidade do poeta de sintetizar a complexidade da existência humana em uma única expressão, em um lamento, um desabafo ou uma celebração que ecoa a totalidade da vida. É a voz do poeta que, com um único som, pode abarcar a imensidão do universo.
Os dois últimos versos do poema marcam uma virada pessoal e intensamente lírica: "E é amar-te, assim, perdidamente… / É seres alma, e sangue, e vida em mim / E dizê-lo cantando a toda a gente!". Aqui, a definição do poeta se funde com a experiência amorosa. A universalidade da arte poética se conecta com a particularidade de um amor avassalador. O "tu" a quem o poema se dirige torna-se a essência da existência do eu-lírico ("alma, e sangue, e vida em mim"). Essa paixão intensa não é guardada em segredo; pelo contrário, é "dizê-lo cantando a toda a gente!", transformando o amor pessoal em canto universal, em poesia que se espalha e se compartilha. Essa fusão do íntimo com o público, do particular com o universal, é uma das marcas registradas da poesia de Florbela.
"Ser poeta" é, portanto, um poema que desvenda a complexidade da condição poética sob a ótica de Florbela Espanca: a elevação, a dualidade, a busca incessante, a paixão ardente, a capacidade de síntese e, finalmente, a fusão indissolúvel entre a vida, o amor e a arte. É um mergulho na psique da poeta, revelando sua sensibilidade exacerbada e sua entrega total à experiência de sentir e de transpor essa vivência para a palavra.
Biografia de Florbela Espanca
Florbela Espanca, nascida Florbela de Alma da Conceição Espanca em Vila Viçosa, Alentejo, em 8 de dezembro de 1894, foi uma das mais notáveis e atormentadas poetas portuguesas do século XX. Sua vida, marcada por amores intensos, perdas dolorosas e uma incessante busca por reconhecimento e compreensão, reflete-se profundamente em sua obra, tornando-a uma figura emblemática do simbolismo e do início do modernismo em Portugal, com uma voz singular que, ainda hoje, ressoa com força.
Infância e Primeiros Anos
Florbela foi filha ilegítima de António Augusto Espanca, um comerciante, e de Antónia da Conceição Lobo, uma empregada doméstica. Essa condição de ilegitimidade, um estigma social na época, certamente marcou sua infância e influenciou sua sensibilidade. Seu pai, embora não a reconhecesse legalmente de imediato, manteve certa proximidade e, posteriormente, ofereceu-lhe apoio financeiro. Florbela foi criada por seu pai e sua madrasta, Mariana Espanca, a quem dedicava grande carinho.
Desde cedo, Florbela demonstrou uma inteligência aguçada e uma paixão pela literatura. Sua inclinação para a escrita era evidente, e ela começou a compor versos ainda muito jovem. Aos 16 anos, em 1910, publicou seus primeiros poemas em jornais locais, sob o pseudônimo de "Gypsy", o que já indicava um espírito livre e inquieto.
A Vida Estudantil e os Primeiros Casamentos
Em 1917, Florbela ingressou na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, onde se tornou uma das primeiras mulheres a frequentar o curso superior em Portugal. Nesse período, ela se destacou por sua vivacidade e inteligência, mas também por uma sensibilidade que a tornava vulnerável às turbulências emocionais.
Sua vida amorosa foi intensa e, muitas vezes, tumultuada. Florbela casou-se pela primeira vez em 1913, aos 19 anos, com Alberto Moutinho, colega de colégio. O casamento, porém, não durou muito. Em 1921, casou-se novamente com António Guimarães, um alferes, de quem se divorciaria em 1925. Essas experiências conjugais, frequentemente frustradas, contribuíram para a sua visão, muitas vezes melancólica e desencantada, sobre o amor e as relações humanas, temas recorrentes em sua poesia.
A Busca por Reconhecimento e a Publicação de Suas Obras
Apesar das dificuldades pessoais, Florbela nunca abandonou a escrita. Sua poesia, carregada de lirismo e uma profunda exploração da alma feminina, começou a ganhar visibilidade. Em 1919, publicou seu primeiro livro de versos, "Livro de Mágoas", que já revelava a intensidade e a dor que marcariam sua obra. O livro foi bem recebido pela crítica e pelo público, consolidando seu nome no cenário literário português.
Em 1923, publicou "Livro de Sóror Saudade", uma obra que aprofundava os temas da solidão, do desejo e da busca por um amor idealizado. Esse livro, considerado por muitos como o mais maduro de sua produção, reforçou sua posição como uma das vozes mais originais da poesia portuguesa de seu tempo.
As Perdas e a Fragilidade Emocional
A vida de Florbela foi assombrada por uma série de perdas devastadoras que minaram sua já frágil saúde mental. Em 1927, perdeu seu irmão mais novo, Apeles Espanca, em um trágico acidente de avião. A morte de Apeles, a quem era profundamente ligada e considerava seu confidente e alma-gêmea, foi um golpe avassalador para a poeta. A partir desse momento, sua saúde psíquica deteriorou-se consideravelmente, e ela entrou em um estado de profunda melancolia e depressão.
Em 1929, Florbela casou-se pela terceira e última vez com Mário Lage, um médico. Embora Mário fosse um companheiro atencioso e solidário, a depressão de Florbela se agravava, e ela vivia em um estado de angústia constante, muitas vezes internada em sanatórios.
O Fim Trágico e o Legado
Florbela Espanca cometeu suicídio em 8 de dezembro de 1930, no dia de seu 36º aniversário, em Matosinhos. Sua morte prematura e trágica chocou o meio literário e a sociedade portuguesa. Deixou para a posteridade uma obra que, embora marcada pela dor e pela melancolia, é também um testemunho de uma força vital inquebrantável e de uma profunda sensibilidade artística.
Postumamente, foram publicadas várias de suas obras, incluindo a coletânea "Charneca em Flor" (1931), considerada por muitos como seu testamento poético, e o "Diário do Último Ano", que revela a intensidade de seus pensamentos e sentimentos em seus últimos meses de vida.
O Legado de Florbela Espanca
Florbela Espanca é hoje reconhecida como uma das mais importantes vozes da poesia portuguesa. Sua obra, permeada por temas como o amor (muitas vezes idealizado e não correspondido), a morte, a solidão, a dor, a condição feminina e a busca incessante pelo infinito, continua a emocionar e a inspirar leitores de todas as gerações.
Ela explorou com maestria o soneto, forma poética que dominava com rara habilidade, conferindo-lhe uma sonoridade e uma musicalidade únicas. Sua linguagem, rica em metáforas e imagens vívidas, é marcada por uma profunda subjetividade e uma exploração corajosa dos sentimentos mais íntimos. Florbela foi uma precursora ao abordar abertamente a sexualidade e o desejo feminino em seus versos, o que era incomum para a época.
A intensidade de sua vida e de sua poesia, bem como sua morte trágica, contribuíram para a formação de um mito em torno de sua figura, tornando-a um símbolo da mulher artista que viveu sua arte com paixão e entrega total. A obra de Florbela Espanca transcende o tempo, permanecendo como um grito de alma que ecoa na literatura e na memória cultural de Portugal e do mundo lusófono.
A análise do poema "Ser poeta" e a biografia de Florbela Espanca se entrelaçam para formar um panorama completo da artista e da mulher. O poema, um autorretrato da alma poética, ganha ainda mais profundidade quando compreendido à luz de sua trajetória pessoal, marcada por amores, perdas e uma sensibilidade exacerbada. A vida de Florbela foi, ela mesma, um poema vivido, com toda a sua intensidade, suas contradições e sua busca incessante por um sentido maior para a existência. Sua obra é um convite a mergulhar nas profundezas da alma humana, uma jornada que, embora por vezes dolorosa, é sempre enriquecedora.
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